quinta-feira, 15 de março de 2012

Nomadismo e o processo de sedentarização (1 de 2)

Aula inicial sobre nomogênese, transcrita a partir de gravações realizadas pelos monitora Paula Zalouth em agosto de 2011.
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Vamos começar a aula de hoje no ponto que diz respeito a estas civilizações sem escrita, ao direito dos povos sem escrita. É a primeira parte desta nossa unidade que precisa ser devidamente esclarecida para que se aplique sobre ela aquela lógica, para que tenhamos como enxergar nela aquela lógica que chamamos de complexificação social: a trajetória de complexidade social crescente que vai criando um ambiente de realização e aparecimento do direito e da norma jurídica. Esta primeira abordagem diz respeito ao Crescente Fértil, situado geograficamente aonde se encontram estes primeiros povos que nós vamos estudar aqui.
O Crescente Fértil é a parte norte da África. É uma região que envolve a Mesopotâmia, na maior parte, que é a região entre o Rio Eufrates e o Rio Tigre. A região entre rios ficou conhecida historicamente como Mesopotâmia - literalmente “entre rios”, mesos potamis.  E esse Crescente Fértil é uma região ainda hoje conflituosa, pois abrange a região entre Israel e Palestina. A maior parte do que era a Mesopotâmia está hoje entre o Irã e o Iraque, que é uma região ainda hoje conflituosa.  O Crescente Fértil se estende também para essa região que tem um delta visível na região do Nilo, uma região extremamente fértil.
Um historiador de bastante renome no século XX, Arnold Toynbee,  faz uma observação que eu preciso recuperar para essa aula aqui. O espaço onde a história humana se desenvolve, a biosfera, essa parte onde nós podemos viver, condiciona toda a nossa vida. A História não é independente da geografia, não é independente das condições climáticas. Muito daquilo que nós vamos ver durante boa parte da história humana tem esses condicionamentos, sejam eles mais claros e determinantes, sejam eles um pouco mais leves e superáveis. Numa época tecnológica como a nossa, nós somos mais livres, nós temos condições de superar o problema de escassez de água, condições de superar determinadas limitações físicas como a nossa incapacidade de voar. O avanço tecnológico nos permitiu o domínio e o controle sobre algumas dessas limitações da biosfera. Quanto mais para trás nós estamos na História, maior os peso desses condicionamentos, eles são mais determinantes e aqui nós vemos isso com muita força, com muita intensidade. O local, o ponto geográfico onde essas primeiras civilizações se desenvolvem não é qualquer um, aleatoriamente, é um local que geograficamente permitiu o processo de sedentarização.
Esta característica vem do solo, da fertilidade do solo. Esta região mesopotâmica é uma região altamente fértil por causa dos detritos orgânicos que são depositados sobre o solo, tanto pelo

Rio Tigre quanto pelo Rio Eufrates. A região entre rios acaba tendo enormes terras agricultáveis, seja porque é uma enorme área de planície e uma planície fértil, que é fertilizada tanto por um rio à esquerda quanto por um rio à direita. Esta condição é uma condição pressuposta para o desenvolvimento dessas primeiras civilizações. Então não é aleatório, elas não vão aparecer eventualmente em qualquer lugar. Aparecem aí por causa de um fator geográfico que condiciona essa possibilidade. Não vai determinar o seu sucesso, mas condiciona as possibilidades.
São várias civilizações, não há uma civilização mesopotâmica, há civilizações mesopotâmicas. Nós vamos falar das primeiras civilizações da História, como os assírios, como os fenícios, depois nessa região também os caldeus, os próprios hebreus, os babilônicos... São várias as civilizações que vão se desenvolvendo aí, com graus diferenciados de desenvolvimento e avanço, em uma época na qual nós vamos ter algumas mudanças axiais, algumas mudanças que são decisivas para que essas civilizações possam dar o passo seguinte. Vamos imaginar uma espiral de complexidade social, mas ao mesmo tempo estas mudanças têm uma capacidade muito mais intensa de se disseminar entre essas civilizações. Estou falando de coisas que para nós hoje são absolutamente simples, como o domínio do fogo, como a fabricação de ferramentas, como o domínio da passagem do ferro para o bronze, o domínio da artesania, da capacidade de fabricação de tijolos, do adubo, da cerâmica, estes avanços rapidamente se disseminaram e determinavam um ponto de não retorno a partir do qual quem não se adaptasse a estas situações, quem não fosse capaz de incorporar estas tecnologias, desapareceria. Assim acontece com a primeira grande revolução dentre todas: a passagem do nomadismo para o sedentarismo.
A primeira grande tecnologia (vamos entender como tecnologia os instrumentos artificiais, essas medidas artificiais que permitam ao homem algum controle sobre a natureza), foi a agricultura, que nesse sentido é uma tecnologia. Ela permitirá ao homem algum controle sobre um elemento natural, que é o alimento. A sua capacidade de produzir esse alimento, a sua capacidade de armazená-lo, de distribuí-lo, isso que antes era uma mera dádiva natural, passa, ainda que continue a ser uma dádiva, a ter algum grau de previsibilidade e de controle. Sem a agricultura nós não poderíamos falar dessa passagem do nomadismo para o sedentarismo. E sem a passagem do nomadismo para o sedentarismo também não poderíamos falar no início deste processo de progressiva complexidade social no meio de que o direito passa a ser uma tecnologia também, que vai ter uma finalidade específica dentre outras: a de estabilizar estas conquistas civilizatórias e permitir a multiplicação desse processo de complexidade social. Então em algum momento dentro da mudança nós temos que ter algum tipo de mecanismo que nos permita a estabilização das mudanças - e aos poucos a gente vai exemplificando e fazendo com que essa fórmula se torne menos abstrata e mais visível pra nós aqui. Mas o direito terá, dentre outras, essa grande finalidade: ele estabiliza determinadas expectativas e vai funcionar aí como um instrumento de resolução ou mediação de conflitos, mas essencialmente como de estabilização social.
Aqui é a mesma área: o rio Tigre e o rio Eufrates descendo aqui. Estes locais que estão marcados aí (no mapa) por pontos são as primeiras grandes cidades que vão surgir. Nós estamos falando – para situar cronologicamente, já que geograficamente já nos situamos - de um período longo que vai entre 8.000 anos a.C, com o surgimento de Ur, 7.000 anos com o surgimento de Jericó, até a entrada da chamada era da Antiguidade Clássica - estamos aí por volta do século 8 a.c. São milênios de uma evolução bastante lenta. Nós vamos falar de gregos, vamos falar de romanos, a partir de 750 a.C. Então, já entrados no último milênio antes do nascimento de Cristo, antes do inicio do ano Domini. E eu estou situando o início dessa história em 8.000 anos antes de Cristo – temos aí pelo menos sete mil anos em que o desenvolvimento dessas histórias foi um desenvolvimento lento, um desenvolvimento cheio de altos e baixos. Não é um desenvolvimento linear: assim como algumas civilizações caminharam para o domínio da agricultura, caminharam para o domínio da escrita, para o desenvolvimento da norma jurídica, outras foram por outros caminhos que resultaram em consequências absolutamente diferentes dessas, e inclusive sua própria extinção e o seu desaparecimento. Ou foram escravizadas e depois se miscigenaram, ou foram desaparecendo pelo extermínio (seja um extermínio bélico, seja morrerem de fome). Esses caminhos não são lineares, nem todas as civilizações foram trilhando a mesma trajetória. É um desenvolvimento muito, muito lento. Até nós falarmos de uma mudança significativa da história como a passagem da escrita para uma linguagem fonética nós temos muito tempo. Essas mudanças não são mudanças velozes.
As primeiras cidades, o início dessas cidades se dá bem aqui, na cidade de Ur, na região mesopotâmica. Depois as cidades vão se multiplicando. O que é interessante eu mostrar para vocês é que não é uma coincidência todas estarem numa mesma região. Estou apenas

geograficamente mostrando o argumento. Essas cidades estão sempre associadas a rios, mesmo aquelas mais longes deste grande centro de poder aqui onde estão concentradas a maior parte das cidades, todas essas áreas são áreas férteis. Assim como elas criam as condições para a sedentarização, elas criarão condições dentro da civilização sedentária. Nós não podemos falar em civilização antes da sedentarização. A palavra civilização está ligada diretamente à capacidade do homem de viver em cidades, de organizá-las, de criá-las. Isto é a civilização. Nós não temos civilização nômade. As civilizações são sempre civilizações sedentárias. Existem eventualmente povos nômades, mas civilização, não.
A agricultura, que permitirá essa civilização, vai criar condições para que se continue nesse processo de complexidade social a partir dela. O segundo grande momento civilizatório (o primeiro é a agricultura), será o comércio. Os mesmo rios que criam as condições de fertilidade do solo que permitem a agricultura e a sedentarização serão também os canais primeiros das civilizações humanas de troca comercial. As trocas comerciais se darão pelos rios de maneira mais frequente e em maior volume. Aí novamente a observação de ____: nós temos um condicionamento físico, geográfico da biosfera humana àquilo que o homem pode fazer. Existiam os rios, e os rios criam as condições para esse comércio. O comércio se dará por eles, como acontece até hoje – pelos rios e depois, com o avanço tecnológico, pelo mar. Mas a conquista destes espaços é a maneira como o homem se espalha na história. Ele vai conquistando espaços que antes lhe eram vedados pela sua incapacidade tecnológica, e ele controla mais o elemento (a água) e vai utilizar o rio ao seu favor. Então esses rios eram dominados pelo comércio, e algumas cidades dependem essencialmente deles para conseguirem suprir as suas necessidades. Porque uma cidade que tenha um bom campo de trigo, mas não possua cerâmica, tem o comércio como o seu instrumento principal para suprir estas necessidades.
Mas nós falamos de uma economia de troca. Isto ainda não é capitalismo, nós falamos de uma economia de troca entre as populações, é a esse respeito que eu estou me referindo. A economia de troca não é só a troca do trigo pela cerâmica, a troca do arroz pelo trigo, ou a troca do porco pela cabra, não é só isso. Dessa troca material há inúmeras outras trocas, a começar pela troca cultural. Os povos que trocam entre si artefatos diferentes estão trocando entre si também a cultura. O contato com outra língua, o contato com outros deuses e o contato com outras tecnologias, leiam: outras formas de fazer, outros modos de fazer. Eu

posso observar que o tipo de técnica utilizada por uma civilização lá de cima do rio para fazer um vaso é melhor do que a que eu utilizo aqui, porque os meus vasos quebram rapidamente, enquanto os vasos deles duram mais. E eu posso aprender como fazer isso. O comércio é que vai garantir durante muito tempo a estas civilizações uma capacidade de disseminação de cultura muito intensa. E é o que vai fazer toda a diferença da história humana, porque o comércio é a primeira e a mais importante, na antiguidade pré-clássica, das vias que a humanidade tem a sua disposição para romper aquele isolamento primitivo inicial - e liguem à palavra “primitivo” a palavra primata a que eu já me referi aqui, porque elas têm a mesma ligação etimológica. O isolamento é natural do primata. Não o isolamento do indivíduo, o isolamento do grupo. Eles vivem sempre em grupo, nós vivemos em grupo. Agora, nós tendemos a nos isolar dos outros grupos. O comércio é a primeira instituição humana – uma das mais importantes - que nos leva a romper esse isolamento. Nós entramos em contato com povos diferentes através do comércio. E dado que necessitamos disto, necessitamos desta troca, ela nos beneficia, nós mantemos esse contato. Procuramos estabilizar esse contato. Procuramos ampliar esse contato cada vez mais. É coisa que talvez não fizéssemos sem o comércio, porque o outro sempre parecerá um estranho e um inimigo, mas através do comércio, nós podemos ter, apesar de todas as nossas diferenças, algumas coisas em comum. Eu quero ganhar e você quer ganhar. Nós encontramos um elemento em comum.
Observem, eu estou me referindo à Mesopotâmia, mas eu posso me referir à criação da União Européia, evoluindo da Comunidade do Carvão e do Aço, depois da Comunidade Econômica Européia, até chegar à União Européia – a União Européia é uma idéia econômica absolutamente estável. Dá à Europa a capacidade de resolver crises pontuais, colocando-as para frente.  Isoladamente, os países europeus não conseguiriam fazer isso. Ela é uma ideia econômica muito boa e funcional. Agora, nesse sentido ela é uma unanimidade e um consenso econômico, mas ela está longe de ser um consenso no que diz respeito à política e à cidadania.  A União Europeia já avança para os seus vinte anos, enquanto que a idéia de uma Constituição Europeia não foi aprovada.  Pois ela não ia tratar de assuntos econômicos - são tratados que fazem isso, Tratado de Roma, Tratado de Maastrich. A Constituição Europeia ia tratar de direitos comuns entre alemães, irlandeses, portugueses, espanhóis... Aí, nós já não temos consenso, aí nós já não nos entendemos. Se é para avançar para isso, nós já não nos entendemos. Se quisermos avançar um pouco mais para prever direitos e estabelecer garantias para imigrantes, aí que não se entende, os países imediatamente se fecham. E às vezes se

fecham e detonam bombas. O consenso econômico nos leva a romper o isolamento. Às vezes ele nos traz na sua corda, nos seus vagões, outras formas de entendimento, mas que são sempre, do ponto de vista humano, mais instáveis do que do ponto de vista econômico. Ninguém questiona a União Européia do ponto de vista economia, mas os povos a questionam do ponto de vista da extensão da sua cidadania. O problema é sempre adiante.
Aqui, um grande comércio uniu esses povos. Uma grande rede comercial. Mas isso não fez com que se entendessem como irmãos, essas coisas vão caminhar separadamente. O comércio é uma forma que nós temos de, em sendo inimigos, nos entendermos. Os povos podem ser inimigos e podem comercializar. É assim, repito, até os dias de hoje. A potência americana se torna potência americana no contexto das duas grandes guerras mundiais, e comercializando com o inimigo. Eu posso entrar em guerra contra você, mas “amigos, amigos, negócios a parte” vale também para “inimigos, inimigos, negócios a parte”. Isto é um avanço.
Aqui, só uma demonstração: destas civilizações que foram se sucedendo, os sumérios e acadianos dominaram essa região antes de 2.000 a.C. Depois, o domínio mesopotâmico ficou com os auduítas, depois os assírios tiveram uma civilização extremamente florescente, mas que também desapareceu, e um domínio muito menor dos caldeus. Mas todos esses impérios caíram, pois todos eles, em algum dia, cairão.
Como funciona, só para exemplificar, essa questão que chamamos de complexidade social? Como é que isso se cumpre? Vamos considerar, aqui, um ciclo básico de sobrevivência que gira em torno da caça e da coleta, da pesca não, da caça e da coleta. Nós temos a caça e a coleta. Enquanto se sustenta, o povo nômade fica naquela localidade, quando rareia vai para uma nova migração em busca de caça e coleta mais fácil. Em algum momento elas terminarão, temos uma nova migração. O grupo nunca consegue sair desse ciclo. A questão não é que povos mais avançados e mais complexos consigam eliminar esse ciclo. Não dá para eliminá-lo, o ciclo básico está sempre conosco, sempre. Nós almoçamos, quando a noite chega, sentiremos fome, vamos nos alimentar. No dia seguinte, sentiremos fome novamente.

Nós desgraçadamente sempre sentiremos fome, por mais alimentados que sejamos. E às vezes, muito bem alimentados, mesmo sem sentir fome, nós queremos comer. É a questão mais nova do nosso tempo. Nessa época, obesidade não era um problema, porque a necessidade da reserva de energia estava ligada diretamente à escassez. Como o nosso problema não é hoje mais a escassez, mas o nosso corpo ainda está programado para acumular energia para uma eventual escassez, a gente continua comendo sem ter escassez nenhuma e sem gastar essa energia. Eu penso muito nisso quando vou ao McDonald’s.
Aqui, o ciclo não se romperá, ele permanece. A questão das sociedades mais complexas é que elas vão acrescentando sobre o ciclo básico de sobrevivência outros novos ciclos, outros ciclos que irão envolvê-lo ao ponto tal que esta civilização fica mais complexa. Vou dar um exemplo disto: ao ciclo básico de sobrevivência, uma determinada civilização acrescenta um ciclo de produção agrícola, depois um ciclo de comércio, redes comerciais e comercialização, depois um sistema educacional, que torna os outros ciclos mais complexos também, e vai adicionando camadas sobre a camada inicial. Ela não rompe a inicial, ela acrescenta. As civilizações mais complexas, aquelas que têm mais camadas e mais ciclos adicionados à camada inicial, elas funcionam de maneira tão intensa que nós somos capazes inclusive de nos esquecermos do ciclo inicial que continua lá e que continua funcionando. Exemplo: nós não passamos o dia inteiro pensando sobre o que vamos comer. Não passamos o dia inteiro pensando no que vamos comer, e se pensamos, não nos preocupamos em como a nossa sociedade se organiza para garantir que tenhamos comida na mesa. Não pensamos o dia inteiro pensando se vamos encontrar comida. Nós simplesmente fazemos o que temos que fazer todos os dias, e na hora da alimentação a alimentação estará lá, e se não estiver eu saio e compro o alimento. Mas eu não estou organizando meu dia para uma caçada, eu não estou organizando a semana para uma caçada, pelo menos não a de alimentos. Não nos organizamos o dia inteiro para a formação de grupos, elaboração das armas, nós nos esquecemos disso. Aí podemos nos dedicar, às sete e quinze da noite de quarta feira, a estudar as civilizações mesopotâmicas de 2000 a.C. Isso é um luxo. Se estivéssemos pensando em como conseguir a carne e as batalhas, que os mesopotâmicos nos aguardassem. Ninguém ia se preocupar com eles. Se estivéssemos nos preocupando com a fabricação das roupas que vestiríamos, os mesopotâmicos iam aguardar talvez mais uns 2000 anos. Se estivéssemos nos preocupando com a iluminação que nos permite estar aqui, com a energia que gera uma temperatura mais amena para nós podermos trabalhar com um grau maior de concentração, se essas fossem as nossas preocupações, nós não conseguiríamos manter as nossas expectativas. Nós não estaríamos fazendo planos para daqui a cinco anos. Quando nós não temos a perspectiva de conseguir terminar o dia, de conseguir fechar a semana, eu não posso me preocupar com cinco anos, com um ano, com um mês. O que permite que estas expectativas sejam possíveis e possam ser sustentadas por um prazo cada vez maior, o que o mundo moderno tem que nos permite um certo controle, ou pelo menos a perspectiva de um certo controle social sobre o tempo, são estas camadas que vão se acrescentando sobre o ciclo básico de sobrevivência e que ao serem acrescentadas nos permitem  a ideologia, a imagem social, a cosmologia social de que o ciclo básico de sobrevivência está resolvido. E é assim que nós vivemos, nós consideramos o ciclo básico de sobrevivência como resolvido.
Ninguém ao ser perguntado por que está fazendo o curso direito responderia “porque gostaria de me alimentar melhor”, “porque daqui a cinco anos eu quero ter carne”. Nós não falamos isso. Vai se falar em segurança, estabilidade, quero fazer isso, fazer aquilo, seguir a carreira tal, a carreira “y”. A necessidade de carne não seria uma necessidade para daqui a cinco anos, seria para amanhã. Nós pensamos nos cinco anos, pois nós consideramos o ciclo básico resolvido, mas isto não vai acontecer de uma hora para a outra. Esses ciclos, a criação desses ciclos e a superposição deles é o que nós chamamos de processo complexificação social e isso é oriundo da civilização, e é ela que de uma certa maneira possibilita o ciclo e é possibilitada pela presença do ciclo. Isto é uma via de mão dupla.
Eu, no semestre passado, utilizei uma expressão emprestada do Ítalo Calvino, que não foi uma expressão criada para a História, mas eu a empresto para o uso da História aqui. Falamos que, se pudermos ilustrar esta imagem dos ciclos sociais interpostos, poderemos ilustrá-la pela imagem da alcachofra. Trata-se de um vegetal cujo centro é espinhoso e há várias camadas sobrepostas que envolvem esse centro. Você não vê o centro a não ser que vá descamando esse centro. O centro é absolutamente inóspito, é hostil, nós o suavizamos, a natureza o suaviza com a sobreposição das outras camadas. Com a civilização é assim, o centro de toda e qualquer civilização é assim, inóspito, hostil. No centro nós nos matamos para sobreviver. Neste centro essencial de qualquer agrupamento nós caçamos para sobreviver, nós disputamos com o outro para que possamos sobreviver, nós hostilizamos os grupos estranhos para que o nosso grupo possa sobreviver. Nós não nos associamos. Aquilo que chamamos de civilização é o que nos afasta, o que deve nos afastar desse centro inóspito e espinhoso.


Quando em determinados momentos de ruptura da ordem civilizatória nós somos levados de uma maneira rápida a quebrar todas essas camadas civilizatórias, nós voltamos a ser jogados ou confrontados com esse centro espinhoso e hostil dos agrupamentos humanos. O grande exemplo é a guerra civil, são as situações de desordem, são aquelas situações em que períodos prolongados de falta de energia elétrica fazem com que nos jornais do dia seguinte as manchetes reportem a elevação em escalada na noite anterior dos assaltos, dos saques, dos roubos. Em situações como no Haiti, em que a quebra da ordem fez com que os exércitos decretem lei marcial. Em situações como a guerra civil da República Dominicana, em que, no início da década de 30, os haitianos invadiram a República Dominicana, atacaram os dominicanos nas fazendas, os empregados dominicanos nas fazendas, para matar a terçadadas, a machadadas, o senhor.
Nas situações de quebra de ordem em que nós não vemos mais camada civilizatória nenhuma, nós somos jogados imediatamente a este núcleo pouco associativo e hostil que ainda está na base do ciclo de sobrevivência. Usando a linguagem hobbesiana, se o homem é o lobo do homem, o que nós podemos fazer é enjaulá-lo, mas ele não se tronará jamais uma outra coisa – um pônei, ainda que maldito. É essa a concepção.
Os grupos nômades teriam estas características: ênfase na mobilidade, ausência de estímulo do grupo à procriação, presença de noções culturais estritamente tribais e matriarcalismo.
A matriarcalidade ainda é um ponto controverso. Alguns antropólogos consideram que alguns grupos humanos primitivos eram matriarcais, baseados numa idéia que eu considero ingênua: o pertencimento a tribo era determinada pela filiação. Eu pertenço à tribo “A”, eu pertenço à tribo “B” em função da minha ascendência, e a ascendência materna é segura. Nós sabemos com certeza que este sujeito descende da mãe, mas não tínhamos certeza efetivamente se ele ascendia do fulano, do ciclano. A descendência matriarcal determinaria uma prerrogativa de poder maior para as mulheres destes grupos pré-históricos organizados de uma maneira nômade. É uma tese que existe, mas que ainda é controversa e do ponto de vista antropológico e sociológico ela é frágil, pois os grupos humanos se organizam com base na distribuição de poder, e não interessa muito para isto (o poder enquanto conceito sociológico), estas determinações biológicas. Não interessa se ele descende efetivamente de fulano ou de beltrano, basta que o fulano tenha suficiente poder para dizer que sim, que ele descende dele, para que isso sociologicamente seja fato. Não é necessária essa comprovação. Os meandros do poder são muito mais sutis do que visíveis. Essa tese é um pouco ingênua. Eu normalmente não me filio a essa corrente. Eram patriarcais, sim. O poder pertencia ao homem mais velho daquela ascendência, daquela linha de derivação. Era essa a forma de distribuição de poder nesses grupos. Se algum momento esses grupos foram matriarcais, foi bem lá no início. O matriarcalismo não se impôs. O patriarcalismo sim se impôs ao ponto as sociedades antigas serem eminentemente matriarcais – falo de gregos, romanos e de todo o direito que deriva deles, essencialmente patriarcal. Há um ascendente mais velho que tinha todo o poder dentro daquela tribo. É uma características dos nômades.
Esta questão de presenças culturais essencialmente tribais diz respeito a uma observação que eu preciso fazer: não há nenhuma noção de indivíduo nestas tribos, indivíduo como alguém que não se divida, noção de pessoa como sujeito autônomo de direitos etc. Não há. As noções todas dos nômades são tribais e comunitárias. O que é bom é o que serve à comunidade, o que é mau é aquilo que não serve à comunidade. O que vale é o que preserva a comunidade, e não vale o que fragiliza a comunidade. Toda a lógica é em função da comunidade e não do indivíduo, se é bom para o individuo é indiferente. Se não vale para a comunidade, então aquela percepção, aquele desejo, aquele suposto direito teria sua expectativa frustrada, pois se não vale para a comunidade, não vale. Essas são noções tipicamente tribais. Todo um raciocínio social, portanto também protojurídico não poderia se fazer pela idéia de individuo. O que vale é aquilo que vale para a comunidade.
(continua...)

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