quinta-feira, 29 de março de 2012

EX FABULA ORITUR IUS

Transcrição de aula em 26.08.2011 feita pelo monitor Gilberto Guimarães Filho, a quem agradeço.
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Eu começo explicando essa frase, que é uma referência teórica que nós adotamos nesse programa: EX FABULA ORITUR JUS é uma contraposição a um brocardo que se tornou famoso e que é muito comum nos manuais da introdução ao estudo do direito e da sociologia do direito também, que diz EX FACTO ORITUR JUS, ou seja, o Direito nasce dos fatos. Estou dizendo aqui outra coisa, o Direito nasce das histórias, nasce das narrações e das histórias que contamos a nós próprios, aquilo que surge na frase célebre do Sófocles, em Antígona: “As paixões que instituem as cidades, o homem as ensinou a si mesmo”. Nós contamos para nós mesmos as histórias e as narrações que fundam os valores (entendamos aí o termo paixões de maneira ampla, pois a nossa época é restritiva em relação a alguns conceitos). O conceito de paixão, para nós, está quase que identificado com uma questão sexual, sensual,  que diz respeito aos sentidos.
Durante boa parte da História do pensamento, o conceito não era esse. O conceito envolvia também a sensualidade, mas o conceito de paixão diz respeito a tudo aquilo que nos motiva. É muito mais amplo, portanto. Não é apenas a sensualidade que nos motiva.  O conceito de paixão como tudo aquilo, como as forças que nos movem, é o conceito que Sófocles está referindo aqui. As motivações que instituem as cidades, somos nós que nos ensinamos, sejam essas motivações a justiça, a liberdade, a igualdade, todas essas motivações não são dados da natureza, elas são construções humanas e nós as concebemos, as definimos, as consolidamos e transmitimos através de histórias, através de narrações. É a única maneira que nós dispomos para, enquanto animais políticos e sociais, conseguirmos ter uma visão relativamente comum sobre aquilo que comunicamos. Não é possível comunicar senão o que nos seja comum, por isso, o comum está na raiz etimológica de comunicar. Falar sobre o que é comum e, na história humana, nós tornarmos comuns essas paixões, estas virtudes, através das narrações.  De narrações como as Bíblicas,  como as tragédias  e as mitologias sejam nos gregos e romanos  ( a mitologia greco-romana, que é comum) seja a mitologia nórdica, sejam as histórias que estão presentes que eram repetidas e ensinadas nas escolas  gregas e que vem lá de Homero, de Hesíodo. 
O conceito do herói e as virtudes que definem o seu heroísmo, são transmitidas através de poemas contados oralmente e transmitidos de pai para filhos, de professor para os alunos, que posteriormente serão professores e transmitirão a outros alunos, e assim sucessivamente. Essas estratégias comunicativas são aquelas que nos permitem tornar comuns os elementos que nos motivam, que moldam a nossa maneira de pensar, aquilo, por exemplo, que achamos engraçado, que nos dá medo, estimula, revolta, todas essas coisas fazem parte essencial da comunicação humana, daquilo que nos é comum. E apenas dessa maneira, através desse caminho, que nós temos a possibilidade de estabilizar as expectativas sobre o comportamento humano. Diante de um gol de um time, para o qual nós estejamos torcendo, de maneira comum, nós esperamos uma reação feliz da torcida, nós esperamos os gritos, os palavrões, as manifestações de euforia e às vezes, até, de histeria. Se a coisa não é assim nós perguntamos ao torcedor macambúzio e sorumbático que está ao nosso lado: O que lhe preocupa?  Ele não falou nada, ele não disse se algo o preocupava, ele, enfim, não cortou o pescoço, mas ele simplesmente não agiu como nós achamos, de maneira comum, que ele deve agir.
No estrangeiro, o personagem principal é condenado pelos jurados não porque assassinou, sem motivação, duas pessoas na praia. Ele é condenado porque o promotor convenceu os jurados que ele era ruim, mau, frio, porque ele não chorou no enterro da própria mãe e realmente não chorou. Havia circunstâncias para isso, mas o que o condenou foi ele parecer uma pessoa, em razão de um descumprimento de um comportamento, que era esperado, como é esperado de qualquer um de nós. Esses  são os elementos comuns. O que é um bom filho? As virtudes de um bom filho não são as virtudes que cada um de nos tenha individual e isoladamente nas nossas cabeças. Cada um de nós é bom filho da maneira de bem entender? Não. Nós temos o conceito que é comum do que é ser um bom filho. Até o ponto em que esse filho bate na mãe, nós não vamos aguardar que ele justifique o seu ato através da bondade. E nós temos histórias em comum, que nos são contadas há séculos sobre o que são ou quais as virtudes de um bom filho, sim, temos. Essas histórias nos são contadas desde a infância, a família as reproduz, a escola as reproduz. Nós temos essas narrações na religião, a história das virtudes de uma boa mãe em relação ao seu filho contadas também largamente pelas historias, que são transmitidas e que formam os valores que nós temos. E não é manipulação, porque essa é a maneira que nós dispomos para sermos formados. São as histórias que nos são contadas, ao mesmo tempo nós  sabemos quais devem ser as virtudes de um herói, Aquiles não é um herói mas Heitor é um herói, em Homero. Aquiles simplesmente não tem como ser um herói, como nós valorizamos, porque ele é praticamente um imortal. Qual o valor de lutar com alguém, sabendo que ele não pode te matar? E o valor de Heitor, que aceita o desafio sabendo que vai morrer? Esse é o herói, não é Aquiles. Aquiles é um covarde ao matar Heitor, é egoísta, mas Heitor é valoroso.
 Nós choramos por aqueles que entregam as suas vidas por nós. Os aclamamos como heróis, nós homenageamos os que se lançam ao fogo para resgatar bebês ou pessoas indefesas de uma situação de risco colocando a sua própria vida  depois da vida daquela pessoa e como isso dá noticia imediata até hoje porque nós identificamos nisso imediatamente  uma virtude superior, nós identificamos nisso um exemplo, essas histórias são contadas e formam  o que acreditamos ser o bem e o mal, assim também acontece na História do Direito e do Pensamento Jurídico. O que a justiça? Não é algo que possamos ver ou tocar, descrever, portanto, a partir dos sentidos, apropriar e entender através dos sentidos e como podemos ter uma ideia do que ela seja? Através das histórias que nós ensinamos a nós mesmos e que fundamentam o exemplo da justiça enquanto virtude. A história de Salomão, das duas mães que disputam o bebê e Salomão diz, então, que o repartam e que seus guardas tracem no meio o bebê e cada mãe ficaria com uma parte, a verdadeira mãe vai dizer não, que fique todo para a  outra. Quem não conhece essa história de sabedoria? Essa é uma virtude, a justiça está ligada à sabedoria e nós incorporamos a ideia de que seja o justo, não porque vimos, mas porque ouvimos, não porque apreendemos pelo tato, pelo gosto, pelo paladar, mas porque entendemos como a história foi contada.
A virtude de Ilíada, o rei virtuoso não é Agamenon, pelo menos não na sabedoria, sensibilidade, justiça. O rei virtuoso é o rei de Tróia, é o pai de Heitor,  porque vai sozinho ao acampamento inimigo resgatar o corpo do filho. Essas histórias são de leitura obrigatória para nós entendermos o conceito que é o homem e a cultura ocidental, tudo aquilo em que nós acreditamos, a maneira que temos de entender os nossos valores vem dessas historias. A partir do capítulo I do François Ost, contar a lei, algumas histórias estão sendo trazidas e são essas histórias que nos são contadas e onde identificar-se-á pela primeira vez essas virtudes que conformam as paixões, que ensinamos a nós próprios. São duas histórias aqui, são histórias sobre a justiça dentre outras virtudes. A primeira é o Protágoras, que era um dos diálogos de Platão, pois ele escrevia através de diálogos, como uma peça de teatro, pois para o homem grego a peça de teatro é a mais sublime das manifestações do pensamento  com os seu conceitos de diké e aidos (conceitos gregos) e a segunda historia que vai nos dar o conceito de pré-compreensão, adesão e aliança é uma história também escolhida por Ost que é a história do êxodo e da formação dos 10 mandamentos, há hoje um movimento bastante forte dentro da História do Direito que procura buscar nessa narração as primeiras formulações de justiça, tanto Ost que é um autor um pouco mais conhecido e que elege essa via como outros autores importantes. É uma outra forma de pensar a historia do direito, é muito comum nós encontrarmos nos manuais o problema de crer que o inicio da História do Direito  coincide com o inicio da história da escrita isso é um equívoco, não apenas não coincide com a história da escrita como também não coincide com Grécia e Roma, é muito anterior a isso. O inicio do direito ou da intuição jurídica como irá chamar Ost está com a sedentarização do homem e a criação, portanto, daquelas  condições de complexidade social, que formam um ambiente nomogenético, um ambiente de aparecimento da norma e por isso nós retrocedemos em termos de documentos escritos. Esse retrocesso é muito bem documentado nos livros históricos do antigo testamento, no pentateuco, os cinco primeiros livros da bíblia e que compõe a Torá hebraica,  especificamente no êxodo. Esse pentateuco será o foco de uma das histórias que será contada aqui.
O objetivo de hoje é o Protágoras. É um diálogo Platônico onde Platão irá contar a historia dessas virtudes que estão ligadas ao conceito de justiça que são a diké e a aidos. Zeus determinou a Hermes, o mensageiro, que distribuísse as  virtudes entre os homens mas não havendo a mesma quantidade de virtudes para todos que ele distribuísse desigualmente as virtudes, mas duas deveriam estar obrigatoriamente presentes em todos nós e para essas haveria quantidade suficiente. São elas: aidos e diké  as outras são distribuídas de maneira desigual, ou seja, nem todos nós temos talento musical, alguns têm, outros, não tem e outros passam muito distante da possibilidade de ter. Isso é um talento ou uma virtude distribuída de maneira desigual. Alguns têm uma virtude que lhes possibilita um pensamento abstrato, rápido, refinado, outros não. Outros têm virtudes atléticas, poderosas, outros não. Alguns têm absoluta temperança, sangue frio; outros são, entretanto, desesperados, se assustam com qualquer coisa. Nós somos distintos em relação a esses talentos e essas virtudes: Hermes os distribuiu de maneira desigual, mas aidos e diké todos temos. O que isso significa? Aidos e Diké são denominadas virtudes cívicas, são virtudes essenciais e indispensáveis, que permitem a criação das cidades e através das narrativas nós ensinamos a nós o sentido de aidos e diké. Aidos significa o respeito à lei antes dela, antes da lei existir e nos obrigar pela sua sanção nós temos a noção e a consciência de que é necessário fazer algo, é necessário disciplinar. Quando uma pequena associação se forma e alguém diante de problemas como os de organização da turma, da distribuição das bolsas rotativas, do contato com a coordenação do curso, problemas na condução de coisas rotineiras, alguém propõe que deve haver uma organização, precisamos eleger um representante para nos auxiliar na condução de alguns processos decisórios internos, constituir a autoridade. A autoridade apenas se constitui posteriormente ao momento em que nós tomamos consciência da necessidade da autoridade, antes existe a ideia da ordem e depois a constituição da autoridade política, antes de termos o estatuto do idoso, nós tomamos a consciência de que não era mais possível manter aquele estado de coisa, de desrespeito aos idoso, de ausência de direitos  que os diferenciassem e protegessem de maneira especial nos tomamos a consciência do estatuto que ,ao estar numa determinada fila, você de menor idade tem melhores condições de aguentar na fila do que a gestante ou a mãe que está amamentando com o filho no colo, ou de que a pessoa de 65 anos ou mais. Antes da lei essa consciência vem: "isso é errado, isso não pode continuar" antes da lei dizer que as pessoas não podem estacionar  na frente de rampas porque prejudicam o acesso do cadeirante, a consciência vem de que isso é errado e se o ato se repete nos precisamos reprimir. Antes de nos reprimimos o homicídio o roubo o furto nos tomamos a consciência de que esses atos prejudicam a sociabilidade Eles desestabilizam a sociedade quando não se dá a eles a resposta  adequada porque as pessoas resolvem tomar essa justiça com as próprias mãos  e vão fazê-la sem limites. Antes da lei, nós temos a consciência dela, o que nos traz, portanto, um respeito prévio à norma. Eu a aceito e a ofereço porque entendo a sua necessidade, mas esse entendimento é anterior a ela, como por exemplo, os dez mandamentos. Antes deles existem outras coisas necessárias, por exemplo, antes dos 10 mandamentos o povo hebreu precisava ser libertado, porque só pode firmar um contrato e voluntariamente obedecer a ele e a lei também é um contrato, aquele que é livre. Os escravos não podem contratar, tampouco os loucos ou menores sem orientação superior. Só o "livre" pode contratar. Essas condições antecedem a lei, são anteriores de fato à ela e permitem o aparecimento das condições tanto da lei como da sua obediência, isso é Aidos.  é uma ética cívica. A frase da vovó e que nos repetimos pela tradição: "O seu direito termina, onde começa o meu", significa em primeiro lugar o respeito, em segundo lugar a consciência de que se cada um de nos  fizer tudo o que nos dá na cabeça, nós não temos nenhuma possibilidade de vivermos juntos. Nós só podemos viver juntos se nos limitarmos. Nós não temos a possibilidade de fazermos tudo o que quisermos a liberdade, socialmente dita, só é liberdade através da sua limitação. Isso é Aidos, é essa consciência, quando se toma a consciência de que é necessário que eu seja limitado pelos meus direitos para que eu possa exercer os meus direitos , porque se você puder fazer tudo pode inclusive matar. Portanto, assim como você obedece a lei, eu também obedeço e se todos obedecerem então todos ficaremos bem. Eu não estou dizendo que lei é essa, quais são os seus artigos, quais são seus termos, mas todos nós podemos concordar que em sociedade é necessário haver regras.  Sem os conceitos de Diké e Aidos nós não teríamos como ter a pólis, as cidades. Eles são conceitos agregativos, são conceitos cívicos e que nos permitem, portanto, a convivência, vivermos lado a lado.

quarta-feira, 28 de março de 2012

Brasil ante la verdad y la justicia

Abrão analizó los escollos que tiene Brasil ante la formación de la Comisión de la Verdad y la investigación de los delitos del pasado. Señaló que “no hay perspectiva de que se lleven adelante amplios juicios como en Argentina”. Por Adrián Pérez
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Dilma Rousseff comenzó su segundo año de gobierno enfrentando la embestida de un grupo de militares opositores a su política de derechos humanos. El general Luiz Eduardo Rocha Paiva puso en duda que la mandataria haya sido torturada durante la dictadura. Otros militares retirados cargaron contra la Comisión de la Verdad por considerar que “alienta el revanchismo” y “amenaza la paz y la conciliación”. De paso por Buenos Aires, invitado por el Centro de Estudios Legales y Sociales (CELS) y el Centro Internacional para la Justicia Transicional (ICTJ), el secretario nacional de Justicia brasileño, Paulo Abrao –quien participó además de una charla organizada por Memoria Abierta– analizó en diálogo con Página/12 el escenario que atraviesa su país ante la formación de la Comisión de la Verdad y la investigación de los crímenes de la dictadura. “Siempre trabajamos en torno a concepciones políticas de la vida y de la sociedad. Opté por entregar mi proyecto de vida a la afirmación de los derechos humanos”, confía el presidente de la Comisión de la Amnistía. También afirma que lo motivó el ambiente de injusticia que impera en las calles. “El enemigo principal es la discriminación, base de la no identificación entre las personas. Combatirla es trabajar para los derechos humanos”, sostiene el funcionario. Abrao señala que la opinión pública brasileña se fue apropiando poco a poco de ese conocimiento de la violencia y, de ese modo, se fue generando un ambiente de indignación. “Los movimientos sociales iniciaron luchas en torno a la búsqueda de Verdad y Justicia, pero es un proceso inconcluso en Brasil”, completa. –¿Por qué es un proceso inconcluso? –Con la Comisión de la Verdad, Brasil tendrá por primera vez un organismo con prioridad para investigar las graves violaciones a los derechos humanos. La ley concede poderes para que la comisión identifique individualmente las autorías de estos crímenes, cuestión que hasta el momento no había sido posible. Por eso estamos ante un trabajo inconcluso y no sabemos bien cuál será su resultado final. –La comisión podrá determinar con nombre y apellido quiénes cometieron los crímenes pero no enjuiciarlos. –La Corte Suprema brasileña declaró en 2010 que la Ley de Amnistía aprobada en 1979 es amplia y bilateral. Es decir, perdona los crímenes políticos cometidos por la resistencia y por los agentes del Estado en la represión. Esta medida representa un obstáculo concreto para la implementación de juicios criminales en Brasil. Luego se instaló un nuevo fallo en la orden jurídica brasileña declarado por la Corte Interamericana de Derechos Humanos en torno al caso Araguaia. La Corte sentenció la invalidez de la Ley de Amnistía brasileña para el caso de los crímenes de lesa humanidad. Después, en Brasil, no hubo ninguna decisión de los tribunales expresando opinión sobre la internacionalización del fallo de la Corte. Ahora el Ministerio Público Fiscal anunció la apertura de una primera denuncia contra un militar. En materia de juicios, la Corte Suprema deberá manifestarse nuevamente. –¿A qué resquicios apelaron los fiscales en la elevación de la denuncia contra el coronel Sebastiao Curió Rodrigues de Moura, teniendo en cuenta la vigencia de la Ley de Amnistía? –La Fiscalía dijo que se trata de secuestros tipificados como crímenes permanentes, y que por cometerse hasta hoy quedan fuera de la esfera de la Ley de Amnistía, que perdona aquellos delitos cometidos hasta 1979. En segundo lugar, se ampararon en la propia jurisprudencia de la Corte brasileña, que en dos casos de extradición a Argentina (N.d.R.: uno de esos casos fue el del coronel retirado Manuel Cordero, del Ejército uruguayo, extraditado por la Justicia argentina por su participación en el centro clandestino Automotores Orletti) entendió que los crímenes de secuestro permanente pueden ser investigados. Y en tercer lugar, se fundamentan en la decisión de la Corte Interamericana. Estos tres argumentos no estaban en el debate dos años atrás, cuando se produjo la decisión del Supremo. –¿Qué chances tiene su país de juzgar a los represores? –Todos los caminos están abiertos. Una posibilidad es que Brasil se convierta en un caso de verdad sin justicia, incluso, integrando el sistema interamericano de protección a los derechos humanos. Un segundo escenario es que se haga justicia con aquellos casos relacionados con desaparecidos y crímenes de lesa humanidad. Sin embargo, no hay perspectiva de que se lleven adelante amplios juicios donde se juzguen grandes responsabilidades, como sí ocurre en Argentina. –Brasil corre una carrera contra el tiempo si pretende investigar los crímenes cometidos por la dictadura. –En materia de Justicia transicional, desarrolla un proceso en forma tardía. Una de las dificultades es el paso del tiempo. En lo político, eso concluye en un perdón popular a las violaciones de derechos humanos. En el aspecto jurídico trae consigo una discusión sobre la imprescriptibilidad de los crímenes. –¿Cuál es la raíz de ese perdón popular que usted menciona? –La movilización de la sociedad no está en niveles similares a lo que ocurre por aquí. El sentido común indica que existe una idea de olvido. Pero desde 2007 se trabaja con proyectos gubernamentales para establecer, como precepto, que la memoria debe ser la base fundante de una sociedad que pretenda no repetir en el futuro los errores del pasado. Una sociedad construida hoy a partir del olvido será siempre una sociedad injusta. Una encuesta señaló que el 75 por ciento de la sociedad brasileña no conoce la Ley de Amnistía y no participa en el debate público en torno de sus efectos en la protección de los derechos humanos. Esto representa un desafío concreto. –Precisamente, ¿cuáles son los alcances de Ley de Amnistía? –Indica que no se puede abrir ninguna investigación penal sobre las conductas de los represores, sean crímenes contra el orden democrático, persecuciones a las personas, detenciones arbitrarias y encarcelamientos sin autorización judicial, expulsiones de las universidades o el compelimiento a la vida clandestina y al exilio. Todo eso estaría perdonado. Incluso crímenes más graves como torturas, asesinatos, abusos sexuales, desapariciones y masacres. –Juzgar a los responsables, con 400 militares que se oponen públicamente a la derogación de la Amnistía, parece todo un reto. –No es ingenuo percibir que habrá un contexto de disputa por la memoria. Esos actos son una forma de establecer una narrativa oficial, por parte de los represores, que crean un escenario de negación de la verdad y de justificación de la violencia, como si se estuviesen preparando para una situación de escucha pública y denuncia que la Comisión de la Verdad permitirá, hasta constituirse en una institución donde las víctimas puedan tener la confianza de romper con el silencio, como reflejo de los traumas que viven hoy. En ese sentido, la comisión abre una nueva perspectiva. –¿De qué perspectiva estamos hablando? –Tendrá el poder de convocar a quienes participaron en la represión, tanto en la sociedad civil como entre los militares, para que presten toda la información necesaria. –¿Qué elementos impiden que se conozca la verdad? –La falta de acceso a los archivos específicos de los centros de comando que actuaron en la represión. Eso permitiría identificar la cadena de responsabilidades. Estos documentos no están disponibles y los pocos que sí lo están no aportan información suficiente. –La Comisión de la Verdad tiene dos años para exigir documentos públicos, indagar a testigos y solicitar análisis forenses para identificar restos de desaparecidos. ¿Es un plazo suficiente para investigar? –Todo depende del staff administrativo creado para ayudar a la comisión. En Argentina, la Conadep tuvo nueve meses para entregar su informe para un número superior de desaparecidos que en Brasil. Si fuera necesario, ese plazo podría ampliarse en el futuro. En verdad, depende de una estructuración metodológica que posibilite la construcción de frentes de investigación en diferentes temas, donde participen historiadores, politólogos y defensores de derechos humanos que trabajen en la entrega del informe final.

sexta-feira, 23 de março de 2012

Nomadismo e processo de sedentarização (2 de 2)


Os grupos sedentários se organizarão na forma daquilo que estamos chamando de sociedades segmentárias. A diferenciação segmentária, que é como Luhmann chama essas sociedades, surge no feito em que a sociedade se articula em sistemas parciais - em princípio igualitários - que se formam reciprocamente em torno uns dos outros. Isto pressupõe, de alguma maneira, a constituição de famílias. A família constitui uma unidade artificial por cima das diferenças naturais de idade e sexo - incorporando precisamente ditas diferenças. Antes de existir famílias, existe sociedade; é a família a que se constitui como forma de diferenciação da sociedade e não o contrário: a sociedade que se compõe de famílias.”
Nós geralmente imaginamos que existem famílias historicamente antes da sociedade, e a soma dessas famílias forma a sociedade. É essa a maneira ordinária, é essa a maneira comum de analisar isso, quase um lugar comum, um senso comum que acaba formando-se em torno dessa concepção. É intuitivo que pensemos dessa forma. Antes de tudo existiam as famílias, depois elas vão se encontrando e se sedentarizam e nós temos lá uma cidade, que vai formar uma sociedade específica. Luhmann inverte isso. Ele vai dizer que historicamente não é isso que acontece. Antes nós tínhamos a sociedade, que é esse grande grupo igualitário. Eu usaria outra palavra: indiferenciado, indistinto. As diferenças que nós éramos capazes de ver uns nos outros são as diferenças naturais, de idade, de sexo. Elas são constitutivas, elas estão conosco, ela não dependem da nossa vontade, pelo menos ate o século XXI. Esta diferença nasce com você. De resto, socialmente, não há absolutamente nenhuma diferença.
As sociedades segmentárias, que são aquelas que se sedentarizam, são aquelas em que uma forma de diferenciação aparece. Esta diferenciação diz respeito à palavra família, ao conceito de instituição familiar. Família vai aparecer como elemento de distinção em relação à sociedade. Existe a sociedade e existe a família. Eu me distingo da sociedade pelo pertencimento a uma família, e a sociedade se diferencia de mim, aquele elemento que não pertence a minha família se diferencia de mim e está na sociedade pelo mesmo motivo. É isto que significa Luhmann dizer que isso pressupõe de alguma maneira a constituição da família. A família constitui uma unidade artificial por cima das diferenças naturais de idade e sexo que ela acaba incorporando. Se nós considerarmos a família como elemento institucional que ao aparecer estabelece uma ruptura onde antes tudo era idêntico, família de um lado, sociedade de outro, nós vamos criar diferenças novas. Vamos dizer, independentes da diferença de idade e sexo, que antes eram perceptíveis para nós, a diferença que socialmente agora vale é se eu pertenço ou não a família. Não interessará mais para essa sociedade, a princípio, a diferença de idade e sexo. O que vai interessar, apesar de várias diferenças de idade e sexo, se aqueles membros fazem partes da mesma família. Para dizer se fulano ou beltrano fazem parte da nossa família, nós não vamos perguntar qual é o sexo, qual é a idade dele. Isto é absolutamente indiferente para o pertencimento à família. Para nós, o que é importante para o pertencimento à família é alguma ascendência comum, nós podemos ter pessoas de várias idades e sexos diferentes dentro de um mesmo grupo social chamado família. É a isto que Luhmann está se referindo.
A família vai se constituir como uma diferença acima da idade e do sexo e que vai incorporar a diferença idade-sexo dentro dela própria. Dentro da família ela será importante (a distinção idade e sexo). Isto lá dentro da família, não na sociedade, é que vai delimitar quem tem poder ali. Se são filhas, elas pertencem a um tipo de obediência e de criação diferente do primogênito varão ou diferente do patriarca. Dentro da família essa diferença faz algum sentido, é incorporada, mas na sociedade ela não faz mais sentido. O que é importante na briga entre Capuleto e Montecchio, de Romeu e Julieta, não é se Romeu é homem e Julieta é mulher, é que um é Capuleto e o outro, Montecchio. Agora, dentro da família, isso é importante - saber se ele é o homem, o mais jovem irmão ou mais velho, e se ela é menina, se ela é mulher, e isso terá diferença naquela família. Dentro dela, mas entre elas não faz sentido.  Como numa dinastia: não interessa à dinastia a diferença idade-sexo, uma pessoa não fará parte da dinastia por ter a idade “a”, “y”, “z”, por pertencer ao sexo “a” ou “b”. É indiferente. O que Luhmann está dizendo é que a sociedade segmentária é aquela que se caracteriza pela diferenciação entre família e sociedade. É a primeira forma de organização social que aparecerá na História – a diferença entre família e sociedade. E família se constituirá pela diferença, então ela nasce e se diferencia da sociedade, e não o contrário. Existia a sociedade e depois apareceram as famílias, e não o contrário.  As famílias se diferenciarão da sociedade. E entre as famílias nós teríamos a reprodução dessa diferença. Uma família em relação à outra é sociedade. Os membros dessa família aqui, pra eles próprios são família, já a forma de relação entre uma família e a outra é de sociedade.    
Exemplifico no filme. Existe um vínculo de obediência entre o Tonho, que é o personagem do Rodrigo Santoro, em relação ao pai. Esse vínculo de obediência nasce de onde? Nasce da família. Ele é filho de um patriarca. O menorzinho deve obediência a ambos: deve obediência ao primogênito que tem um dever familiar e deve dependência ao seu pai. Em nenhum momento do filme aparece a real possibilidade de, legitimamente, qualquer um dos dois questionar e romper com o pai. O que vai acontecer no final do filme está dentro de outra lógica. Logo no princípio do filme, quando o filho mais novo resolve questionar a autoridade do pai, se dirigindo diretamente ao irmão para pedir que ele não cumprisse o seu dever, leva uma reprimenda, no caso, física (um tapa). Ele cai da mesa, quando ele levanta, ninguém mais vai questionar. A mãe não questiona o filho ir voluntariamente para a morte. Sabe que isso é uma desgraça, lamenta por isso, mas o que tem que ser feito tem que ser feito. Agora, qual é a autoridade que o Ferreira, pai da outra família, tem sobre qualquer um deles? Absolutamente nenhuma, e vice-versa. Os Breves não têm nenhuma autoridade sobre os Ferreiras. Os Breves veem os Ferreira como sociedade (aquilo que é estranho a mim), com quem eu vou lidar com uma maneira diferente da qual eu lido com a minha família. É isso que Luhmann quer dizer quando diz que estas famílias formaram-se em torno umas das outras – elas são o entorno, elas são o ambiente, elas são um universo diferente em relação à minha família. A outra família não será uma família, ela será sempre sociedade, um universo indistinto cujas regras eu não entendo e com a qual eu não conseguirei lidar. Há algum tipo de ingerência aí. Isto é uma sociedade segmentária.
Isto é diferente do que nós veremos na evolução dessa civilização, quando nas sociedades gregas e romanas nós já vamos ter a ascendência da pólis, de uma autoridade que é superior à autoridade de todas estas famílias e que pode determinar através de sua lei um comportamento tanto para uma quanto para a outra. Mas até este momento isto não existe, a única diferença em relação à sociedade é a própria família. Não há cidade ainda, não há pólis, não há um príncipe, não há um tirano. Existem famílias. E isso são as sociedades segmentárias.
Eu só consigo ver o outro como família se eu conseguir lidar com aquela família. Não é que não haja capacidade deles entenderem que aquilo é uma outra família, simplesmente não é esta a minha família, então eu não tenho como lidar com ela, porque ela é uma diferença em relação a mim. O meu universo é este aqui, os outros universos não me interessam porque eu não sei como lidar com ele.
Vou dar um exemplo que vem de uma outra área, da tecnologia. Quando eu ouço um determinado sinal de rádio, e ouço só ruídos, isto pode significar que o aparelho não tem capacidade de decodificar aquilo que eu estou ouvindo, então eu ouço só aquilo. Eu não tenho como entender, por isso aquilo é só ruído. Isto não quer dizer que seja um ruído, pode significar que nós apenas não estamos conseguindo traduzir. É a diferença: aquilo que eu não consigo traduzir, aquilo que eu não consigo decodificar, é aquilo que eu não consigo entender (Heinz Von Forster). Então qual é a única diferença que eu estou a entender aí? Eu sou diferente, como nós em relação uns aos outros. Luhmann vai dizer que cada indivíduo é um sistema psíquico fechado, hermético em relação ao outro. Nós conseguimos perceber a diferença entre nós e os outros. Temos alguma forma de lidar com essa diferença através da comunicação, mas eu jamais poderei entender o outro como a mim mesmo. Então eu sempre vou chamá-lo de outro, eu não chamo o outro de eu. Simples assim. Não chamo. Então vou dizer “eu sou igual ao outro, pensamos igual, somos almas gêmeas”, mas és outro. Eu compreendo a diferença. Meu “eu” vai se constituir em alguma coisa diferente A mesma coisa com a família. Os Breves vão entender a si próprios como família. O resto é sociedade. Eu não extermino a minha própria família, eu extermino a família do outro, através de regras que essas duas famílias estabeleceram para isso. Eles compreendem a diferença constitutiva entre família e sociedade. Eu entendo a outra família diferente da minha, então não posso intitulá-la como família.  Desse ponto de vista, ela se iguala a todas as outras.
É porque não tem mais famílias no filme, mas vamos supor que nós tivéssemos os Breves e mais 50 outras famílias, a forma de compreensão dos Breves em relação às demais seria rigorosamente a mesma: nós somos família, os outros são sociedade. É simples dessa forma. Eu não vou entendê-los como famílias, eu não tenho como singularizá-los. Eu não vou entendê-los como família, eu não tenho como obedecê-los e legitimá-los. Eu vou entendê-los somente como sociedade, sendo todos iguais. A diferença de idade e sexo dentro da família ainda tem sentido, então meu filho mais novo me obedece. Para a outra família não tem absolutamente nenhum sentido, eu não posso mandar sobre o filho mais novo da outra família. Então na sociedade é tudo igual, aqui é que vai ter diferença.
Não há regras fora, só há regras dentro, por isso a diferença entre família e sociedade. Na sociedade não há regras, na família há regras. Não há um Estado. Esta condição, e por isso eu exibi o filme para vocês, é uma condição de sociedade segmentária. Ou seja, não há um Estado, não há outra diferença que se sobreponha à diferença segmentária por excelência, que é a diferença entre família e sociedade. A família constitui-se a si própria como uma diferença. Não há a pólis, não há um Estado que vá se colocar como diferença em relação à família. É assim que as coisas são definidas entre eles, a partir de regras que não são impostas, elas nascem daquela condição de igualdade entre famílias.

As famílias eram isoladas, as casas ficavam a quilômetros, dias de distância. Aquelas famílias eram absolutamente isoladas. Não produziam em comum, não regulavam umas as outras, não interagiam. Tinham a vingança como uma forma de resolução de conflitos, mas só se consegue entender essa vingança se considerarmos essas famílias como isoladas. Porque a vingança só pode ser uma forma de resolução de conflitos entre grupos isolados, pois se os grupos vivem numa situação de igualdade comunitária, a vingança não é adequada, porque as formas de resolução de conflitos devem ser minimamente cooperativas. Eu não me vingo, pois a vingança romperia os laços associativos. Como não há cooperativismo aqui, mas há isolamento, é que a vingança se torna possível. Então realmente estavam isoladas.
Cada família tem a sua esfera de autonomia, cada uma é uma autarquia, ou seja, as famílias são isoladas e regulam suas próprias ações, sobre elas, apenas. Por isso “segmentárias”. Segmento é uma reta pontilhada. São várias, mas não há uma continuidade, cada uma é uma. Elas estão todas colocadas próximas, mas cada uma é uma, não há interação. Por isso segmento, pois há fracionamento. No filme, o espaço da caatinga braba entre uma casa e outra, aquela brincadeira retórica de se chamar aquele lugar de Riacho das Almas, é uma coisa que simbolicamente se refere a essa visualização do isolamento. Não há nada entre uma casa e outra, nem vida; nem a vegetação tem vida, a terra não tem vida, não tem água. Visualmente, aquela geografia é a geografia do isolamento. Geograficamente, aquilo é a representação simbólica do vazio. Esse vazio que procurará ser completado pela criação da pólis. A pólis é essencialmente a instituição que procurará ocupar esse vazio, inclusive territorialmente, vai dizer que não há espaço que não seja regulado por ela, não há espaço que não se relacione com a pólis, não há espaço que fuja ao alcance do tirano. Não há mais os espaços vazios, nem o mediterrâneo é um espaço vazio. Os romanos o chamaram de mare nostrum, assim como os árabes depois chamarão. Mas aqui não há nada disso, há um vazio, há terra seca.
Nós vamos estudar na próxima aula este instrumento de vingança privada como primeira forma de regulação jurídica, a primeira expressão da norma jurídica, e vamos entender como isto funciona dentro de uma sociedade segmentária. Nós explicamos o contexto, vamos continuar trabalhando as imagens do Abril Despedaçado. Portanto, para quem não assistiu, a recomendação veemente é que o assista de maneira que possamos fazer com que estas aulas fortifiquem mais. Eu vou trabalhar com estes elementos que são visualmente fortes e significativos. Deste modo, encerramos a aula de hoje.

quinta-feira, 15 de março de 2012

Nomadismo e o processo de sedentarização (1 de 2)

Aula inicial sobre nomogênese, transcrita a partir de gravações realizadas pelos monitora Paula Zalouth em agosto de 2011.
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Vamos começar a aula de hoje no ponto que diz respeito a estas civilizações sem escrita, ao direito dos povos sem escrita. É a primeira parte desta nossa unidade que precisa ser devidamente esclarecida para que se aplique sobre ela aquela lógica, para que tenhamos como enxergar nela aquela lógica que chamamos de complexificação social: a trajetória de complexidade social crescente que vai criando um ambiente de realização e aparecimento do direito e da norma jurídica. Esta primeira abordagem diz respeito ao Crescente Fértil, situado geograficamente aonde se encontram estes primeiros povos que nós vamos estudar aqui.
O Crescente Fértil é a parte norte da África. É uma região que envolve a Mesopotâmia, na maior parte, que é a região entre o Rio Eufrates e o Rio Tigre. A região entre rios ficou conhecida historicamente como Mesopotâmia - literalmente “entre rios”, mesos potamis.  E esse Crescente Fértil é uma região ainda hoje conflituosa, pois abrange a região entre Israel e Palestina. A maior parte do que era a Mesopotâmia está hoje entre o Irã e o Iraque, que é uma região ainda hoje conflituosa.  O Crescente Fértil se estende também para essa região que tem um delta visível na região do Nilo, uma região extremamente fértil.
Um historiador de bastante renome no século XX, Arnold Toynbee,  faz uma observação que eu preciso recuperar para essa aula aqui. O espaço onde a história humana se desenvolve, a biosfera, essa parte onde nós podemos viver, condiciona toda a nossa vida. A História não é independente da geografia, não é independente das condições climáticas. Muito daquilo que nós vamos ver durante boa parte da história humana tem esses condicionamentos, sejam eles mais claros e determinantes, sejam eles um pouco mais leves e superáveis. Numa época tecnológica como a nossa, nós somos mais livres, nós temos condições de superar o problema de escassez de água, condições de superar determinadas limitações físicas como a nossa incapacidade de voar. O avanço tecnológico nos permitiu o domínio e o controle sobre algumas dessas limitações da biosfera. Quanto mais para trás nós estamos na História, maior os peso desses condicionamentos, eles são mais determinantes e aqui nós vemos isso com muita força, com muita intensidade. O local, o ponto geográfico onde essas primeiras civilizações se desenvolvem não é qualquer um, aleatoriamente, é um local que geograficamente permitiu o processo de sedentarização.
Esta característica vem do solo, da fertilidade do solo. Esta região mesopotâmica é uma região altamente fértil por causa dos detritos orgânicos que são depositados sobre o solo, tanto pelo

Rio Tigre quanto pelo Rio Eufrates. A região entre rios acaba tendo enormes terras agricultáveis, seja porque é uma enorme área de planície e uma planície fértil, que é fertilizada tanto por um rio à esquerda quanto por um rio à direita. Esta condição é uma condição pressuposta para o desenvolvimento dessas primeiras civilizações. Então não é aleatório, elas não vão aparecer eventualmente em qualquer lugar. Aparecem aí por causa de um fator geográfico que condiciona essa possibilidade. Não vai determinar o seu sucesso, mas condiciona as possibilidades.
São várias civilizações, não há uma civilização mesopotâmica, há civilizações mesopotâmicas. Nós vamos falar das primeiras civilizações da História, como os assírios, como os fenícios, depois nessa região também os caldeus, os próprios hebreus, os babilônicos... São várias as civilizações que vão se desenvolvendo aí, com graus diferenciados de desenvolvimento e avanço, em uma época na qual nós vamos ter algumas mudanças axiais, algumas mudanças que são decisivas para que essas civilizações possam dar o passo seguinte. Vamos imaginar uma espiral de complexidade social, mas ao mesmo tempo estas mudanças têm uma capacidade muito mais intensa de se disseminar entre essas civilizações. Estou falando de coisas que para nós hoje são absolutamente simples, como o domínio do fogo, como a fabricação de ferramentas, como o domínio da passagem do ferro para o bronze, o domínio da artesania, da capacidade de fabricação de tijolos, do adubo, da cerâmica, estes avanços rapidamente se disseminaram e determinavam um ponto de não retorno a partir do qual quem não se adaptasse a estas situações, quem não fosse capaz de incorporar estas tecnologias, desapareceria. Assim acontece com a primeira grande revolução dentre todas: a passagem do nomadismo para o sedentarismo.
A primeira grande tecnologia (vamos entender como tecnologia os instrumentos artificiais, essas medidas artificiais que permitam ao homem algum controle sobre a natureza), foi a agricultura, que nesse sentido é uma tecnologia. Ela permitirá ao homem algum controle sobre um elemento natural, que é o alimento. A sua capacidade de produzir esse alimento, a sua capacidade de armazená-lo, de distribuí-lo, isso que antes era uma mera dádiva natural, passa, ainda que continue a ser uma dádiva, a ter algum grau de previsibilidade e de controle. Sem a agricultura nós não poderíamos falar dessa passagem do nomadismo para o sedentarismo. E sem a passagem do nomadismo para o sedentarismo também não poderíamos falar no início deste processo de progressiva complexidade social no meio de que o direito passa a ser uma tecnologia também, que vai ter uma finalidade específica dentre outras: a de estabilizar estas conquistas civilizatórias e permitir a multiplicação desse processo de complexidade social. Então em algum momento dentro da mudança nós temos que ter algum tipo de mecanismo que nos permita a estabilização das mudanças - e aos poucos a gente vai exemplificando e fazendo com que essa fórmula se torne menos abstrata e mais visível pra nós aqui. Mas o direito terá, dentre outras, essa grande finalidade: ele estabiliza determinadas expectativas e vai funcionar aí como um instrumento de resolução ou mediação de conflitos, mas essencialmente como de estabilização social.
Aqui é a mesma área: o rio Tigre e o rio Eufrates descendo aqui. Estes locais que estão marcados aí (no mapa) por pontos são as primeiras grandes cidades que vão surgir. Nós estamos falando – para situar cronologicamente, já que geograficamente já nos situamos - de um período longo que vai entre 8.000 anos a.C, com o surgimento de Ur, 7.000 anos com o surgimento de Jericó, até a entrada da chamada era da Antiguidade Clássica - estamos aí por volta do século 8 a.c. São milênios de uma evolução bastante lenta. Nós vamos falar de gregos, vamos falar de romanos, a partir de 750 a.C. Então, já entrados no último milênio antes do nascimento de Cristo, antes do inicio do ano Domini. E eu estou situando o início dessa história em 8.000 anos antes de Cristo – temos aí pelo menos sete mil anos em que o desenvolvimento dessas histórias foi um desenvolvimento lento, um desenvolvimento cheio de altos e baixos. Não é um desenvolvimento linear: assim como algumas civilizações caminharam para o domínio da agricultura, caminharam para o domínio da escrita, para o desenvolvimento da norma jurídica, outras foram por outros caminhos que resultaram em consequências absolutamente diferentes dessas, e inclusive sua própria extinção e o seu desaparecimento. Ou foram escravizadas e depois se miscigenaram, ou foram desaparecendo pelo extermínio (seja um extermínio bélico, seja morrerem de fome). Esses caminhos não são lineares, nem todas as civilizações foram trilhando a mesma trajetória. É um desenvolvimento muito, muito lento. Até nós falarmos de uma mudança significativa da história como a passagem da escrita para uma linguagem fonética nós temos muito tempo. Essas mudanças não são mudanças velozes.
As primeiras cidades, o início dessas cidades se dá bem aqui, na cidade de Ur, na região mesopotâmica. Depois as cidades vão se multiplicando. O que é interessante eu mostrar para vocês é que não é uma coincidência todas estarem numa mesma região. Estou apenas

geograficamente mostrando o argumento. Essas cidades estão sempre associadas a rios, mesmo aquelas mais longes deste grande centro de poder aqui onde estão concentradas a maior parte das cidades, todas essas áreas são áreas férteis. Assim como elas criam as condições para a sedentarização, elas criarão condições dentro da civilização sedentária. Nós não podemos falar em civilização antes da sedentarização. A palavra civilização está ligada diretamente à capacidade do homem de viver em cidades, de organizá-las, de criá-las. Isto é a civilização. Nós não temos civilização nômade. As civilizações são sempre civilizações sedentárias. Existem eventualmente povos nômades, mas civilização, não.
A agricultura, que permitirá essa civilização, vai criar condições para que se continue nesse processo de complexidade social a partir dela. O segundo grande momento civilizatório (o primeiro é a agricultura), será o comércio. Os mesmo rios que criam as condições de fertilidade do solo que permitem a agricultura e a sedentarização serão também os canais primeiros das civilizações humanas de troca comercial. As trocas comerciais se darão pelos rios de maneira mais frequente e em maior volume. Aí novamente a observação de ____: nós temos um condicionamento físico, geográfico da biosfera humana àquilo que o homem pode fazer. Existiam os rios, e os rios criam as condições para esse comércio. O comércio se dará por eles, como acontece até hoje – pelos rios e depois, com o avanço tecnológico, pelo mar. Mas a conquista destes espaços é a maneira como o homem se espalha na história. Ele vai conquistando espaços que antes lhe eram vedados pela sua incapacidade tecnológica, e ele controla mais o elemento (a água) e vai utilizar o rio ao seu favor. Então esses rios eram dominados pelo comércio, e algumas cidades dependem essencialmente deles para conseguirem suprir as suas necessidades. Porque uma cidade que tenha um bom campo de trigo, mas não possua cerâmica, tem o comércio como o seu instrumento principal para suprir estas necessidades.
Mas nós falamos de uma economia de troca. Isto ainda não é capitalismo, nós falamos de uma economia de troca entre as populações, é a esse respeito que eu estou me referindo. A economia de troca não é só a troca do trigo pela cerâmica, a troca do arroz pelo trigo, ou a troca do porco pela cabra, não é só isso. Dessa troca material há inúmeras outras trocas, a começar pela troca cultural. Os povos que trocam entre si artefatos diferentes estão trocando entre si também a cultura. O contato com outra língua, o contato com outros deuses e o contato com outras tecnologias, leiam: outras formas de fazer, outros modos de fazer. Eu

posso observar que o tipo de técnica utilizada por uma civilização lá de cima do rio para fazer um vaso é melhor do que a que eu utilizo aqui, porque os meus vasos quebram rapidamente, enquanto os vasos deles duram mais. E eu posso aprender como fazer isso. O comércio é que vai garantir durante muito tempo a estas civilizações uma capacidade de disseminação de cultura muito intensa. E é o que vai fazer toda a diferença da história humana, porque o comércio é a primeira e a mais importante, na antiguidade pré-clássica, das vias que a humanidade tem a sua disposição para romper aquele isolamento primitivo inicial - e liguem à palavra “primitivo” a palavra primata a que eu já me referi aqui, porque elas têm a mesma ligação etimológica. O isolamento é natural do primata. Não o isolamento do indivíduo, o isolamento do grupo. Eles vivem sempre em grupo, nós vivemos em grupo. Agora, nós tendemos a nos isolar dos outros grupos. O comércio é a primeira instituição humana – uma das mais importantes - que nos leva a romper esse isolamento. Nós entramos em contato com povos diferentes através do comércio. E dado que necessitamos disto, necessitamos desta troca, ela nos beneficia, nós mantemos esse contato. Procuramos estabilizar esse contato. Procuramos ampliar esse contato cada vez mais. É coisa que talvez não fizéssemos sem o comércio, porque o outro sempre parecerá um estranho e um inimigo, mas através do comércio, nós podemos ter, apesar de todas as nossas diferenças, algumas coisas em comum. Eu quero ganhar e você quer ganhar. Nós encontramos um elemento em comum.
Observem, eu estou me referindo à Mesopotâmia, mas eu posso me referir à criação da União Européia, evoluindo da Comunidade do Carvão e do Aço, depois da Comunidade Econômica Européia, até chegar à União Européia – a União Européia é uma idéia econômica absolutamente estável. Dá à Europa a capacidade de resolver crises pontuais, colocando-as para frente.  Isoladamente, os países europeus não conseguiriam fazer isso. Ela é uma ideia econômica muito boa e funcional. Agora, nesse sentido ela é uma unanimidade e um consenso econômico, mas ela está longe de ser um consenso no que diz respeito à política e à cidadania.  A União Europeia já avança para os seus vinte anos, enquanto que a idéia de uma Constituição Europeia não foi aprovada.  Pois ela não ia tratar de assuntos econômicos - são tratados que fazem isso, Tratado de Roma, Tratado de Maastrich. A Constituição Europeia ia tratar de direitos comuns entre alemães, irlandeses, portugueses, espanhóis... Aí, nós já não temos consenso, aí nós já não nos entendemos. Se é para avançar para isso, nós já não nos entendemos. Se quisermos avançar um pouco mais para prever direitos e estabelecer garantias para imigrantes, aí que não se entende, os países imediatamente se fecham. E às vezes se

fecham e detonam bombas. O consenso econômico nos leva a romper o isolamento. Às vezes ele nos traz na sua corda, nos seus vagões, outras formas de entendimento, mas que são sempre, do ponto de vista humano, mais instáveis do que do ponto de vista econômico. Ninguém questiona a União Européia do ponto de vista economia, mas os povos a questionam do ponto de vista da extensão da sua cidadania. O problema é sempre adiante.
Aqui, um grande comércio uniu esses povos. Uma grande rede comercial. Mas isso não fez com que se entendessem como irmãos, essas coisas vão caminhar separadamente. O comércio é uma forma que nós temos de, em sendo inimigos, nos entendermos. Os povos podem ser inimigos e podem comercializar. É assim, repito, até os dias de hoje. A potência americana se torna potência americana no contexto das duas grandes guerras mundiais, e comercializando com o inimigo. Eu posso entrar em guerra contra você, mas “amigos, amigos, negócios a parte” vale também para “inimigos, inimigos, negócios a parte”. Isto é um avanço.
Aqui, só uma demonstração: destas civilizações que foram se sucedendo, os sumérios e acadianos dominaram essa região antes de 2.000 a.C. Depois, o domínio mesopotâmico ficou com os auduítas, depois os assírios tiveram uma civilização extremamente florescente, mas que também desapareceu, e um domínio muito menor dos caldeus. Mas todos esses impérios caíram, pois todos eles, em algum dia, cairão.
Como funciona, só para exemplificar, essa questão que chamamos de complexidade social? Como é que isso se cumpre? Vamos considerar, aqui, um ciclo básico de sobrevivência que gira em torno da caça e da coleta, da pesca não, da caça e da coleta. Nós temos a caça e a coleta. Enquanto se sustenta, o povo nômade fica naquela localidade, quando rareia vai para uma nova migração em busca de caça e coleta mais fácil. Em algum momento elas terminarão, temos uma nova migração. O grupo nunca consegue sair desse ciclo. A questão não é que povos mais avançados e mais complexos consigam eliminar esse ciclo. Não dá para eliminá-lo, o ciclo básico está sempre conosco, sempre. Nós almoçamos, quando a noite chega, sentiremos fome, vamos nos alimentar. No dia seguinte, sentiremos fome novamente.

Nós desgraçadamente sempre sentiremos fome, por mais alimentados que sejamos. E às vezes, muito bem alimentados, mesmo sem sentir fome, nós queremos comer. É a questão mais nova do nosso tempo. Nessa época, obesidade não era um problema, porque a necessidade da reserva de energia estava ligada diretamente à escassez. Como o nosso problema não é hoje mais a escassez, mas o nosso corpo ainda está programado para acumular energia para uma eventual escassez, a gente continua comendo sem ter escassez nenhuma e sem gastar essa energia. Eu penso muito nisso quando vou ao McDonald’s.
Aqui, o ciclo não se romperá, ele permanece. A questão das sociedades mais complexas é que elas vão acrescentando sobre o ciclo básico de sobrevivência outros novos ciclos, outros ciclos que irão envolvê-lo ao ponto tal que esta civilização fica mais complexa. Vou dar um exemplo disto: ao ciclo básico de sobrevivência, uma determinada civilização acrescenta um ciclo de produção agrícola, depois um ciclo de comércio, redes comerciais e comercialização, depois um sistema educacional, que torna os outros ciclos mais complexos também, e vai adicionando camadas sobre a camada inicial. Ela não rompe a inicial, ela acrescenta. As civilizações mais complexas, aquelas que têm mais camadas e mais ciclos adicionados à camada inicial, elas funcionam de maneira tão intensa que nós somos capazes inclusive de nos esquecermos do ciclo inicial que continua lá e que continua funcionando. Exemplo: nós não passamos o dia inteiro pensando sobre o que vamos comer. Não passamos o dia inteiro pensando no que vamos comer, e se pensamos, não nos preocupamos em como a nossa sociedade se organiza para garantir que tenhamos comida na mesa. Não pensamos o dia inteiro pensando se vamos encontrar comida. Nós simplesmente fazemos o que temos que fazer todos os dias, e na hora da alimentação a alimentação estará lá, e se não estiver eu saio e compro o alimento. Mas eu não estou organizando meu dia para uma caçada, eu não estou organizando a semana para uma caçada, pelo menos não a de alimentos. Não nos organizamos o dia inteiro para a formação de grupos, elaboração das armas, nós nos esquecemos disso. Aí podemos nos dedicar, às sete e quinze da noite de quarta feira, a estudar as civilizações mesopotâmicas de 2000 a.C. Isso é um luxo. Se estivéssemos pensando em como conseguir a carne e as batalhas, que os mesopotâmicos nos aguardassem. Ninguém ia se preocupar com eles. Se estivéssemos nos preocupando com a fabricação das roupas que vestiríamos, os mesopotâmicos iam aguardar talvez mais uns 2000 anos. Se estivéssemos nos preocupando com a iluminação que nos permite estar aqui, com a energia que gera uma temperatura mais amena para nós podermos trabalhar com um grau maior de concentração, se essas fossem as nossas preocupações, nós não conseguiríamos manter as nossas expectativas. Nós não estaríamos fazendo planos para daqui a cinco anos. Quando nós não temos a perspectiva de conseguir terminar o dia, de conseguir fechar a semana, eu não posso me preocupar com cinco anos, com um ano, com um mês. O que permite que estas expectativas sejam possíveis e possam ser sustentadas por um prazo cada vez maior, o que o mundo moderno tem que nos permite um certo controle, ou pelo menos a perspectiva de um certo controle social sobre o tempo, são estas camadas que vão se acrescentando sobre o ciclo básico de sobrevivência e que ao serem acrescentadas nos permitem  a ideologia, a imagem social, a cosmologia social de que o ciclo básico de sobrevivência está resolvido. E é assim que nós vivemos, nós consideramos o ciclo básico de sobrevivência como resolvido.
Ninguém ao ser perguntado por que está fazendo o curso direito responderia “porque gostaria de me alimentar melhor”, “porque daqui a cinco anos eu quero ter carne”. Nós não falamos isso. Vai se falar em segurança, estabilidade, quero fazer isso, fazer aquilo, seguir a carreira tal, a carreira “y”. A necessidade de carne não seria uma necessidade para daqui a cinco anos, seria para amanhã. Nós pensamos nos cinco anos, pois nós consideramos o ciclo básico resolvido, mas isto não vai acontecer de uma hora para a outra. Esses ciclos, a criação desses ciclos e a superposição deles é o que nós chamamos de processo complexificação social e isso é oriundo da civilização, e é ela que de uma certa maneira possibilita o ciclo e é possibilitada pela presença do ciclo. Isto é uma via de mão dupla.
Eu, no semestre passado, utilizei uma expressão emprestada do Ítalo Calvino, que não foi uma expressão criada para a História, mas eu a empresto para o uso da História aqui. Falamos que, se pudermos ilustrar esta imagem dos ciclos sociais interpostos, poderemos ilustrá-la pela imagem da alcachofra. Trata-se de um vegetal cujo centro é espinhoso e há várias camadas sobrepostas que envolvem esse centro. Você não vê o centro a não ser que vá descamando esse centro. O centro é absolutamente inóspito, é hostil, nós o suavizamos, a natureza o suaviza com a sobreposição das outras camadas. Com a civilização é assim, o centro de toda e qualquer civilização é assim, inóspito, hostil. No centro nós nos matamos para sobreviver. Neste centro essencial de qualquer agrupamento nós caçamos para sobreviver, nós disputamos com o outro para que possamos sobreviver, nós hostilizamos os grupos estranhos para que o nosso grupo possa sobreviver. Nós não nos associamos. Aquilo que chamamos de civilização é o que nos afasta, o que deve nos afastar desse centro inóspito e espinhoso.


Quando em determinados momentos de ruptura da ordem civilizatória nós somos levados de uma maneira rápida a quebrar todas essas camadas civilizatórias, nós voltamos a ser jogados ou confrontados com esse centro espinhoso e hostil dos agrupamentos humanos. O grande exemplo é a guerra civil, são as situações de desordem, são aquelas situações em que períodos prolongados de falta de energia elétrica fazem com que nos jornais do dia seguinte as manchetes reportem a elevação em escalada na noite anterior dos assaltos, dos saques, dos roubos. Em situações como no Haiti, em que a quebra da ordem fez com que os exércitos decretem lei marcial. Em situações como a guerra civil da República Dominicana, em que, no início da década de 30, os haitianos invadiram a República Dominicana, atacaram os dominicanos nas fazendas, os empregados dominicanos nas fazendas, para matar a terçadadas, a machadadas, o senhor.
Nas situações de quebra de ordem em que nós não vemos mais camada civilizatória nenhuma, nós somos jogados imediatamente a este núcleo pouco associativo e hostil que ainda está na base do ciclo de sobrevivência. Usando a linguagem hobbesiana, se o homem é o lobo do homem, o que nós podemos fazer é enjaulá-lo, mas ele não se tronará jamais uma outra coisa – um pônei, ainda que maldito. É essa a concepção.
Os grupos nômades teriam estas características: ênfase na mobilidade, ausência de estímulo do grupo à procriação, presença de noções culturais estritamente tribais e matriarcalismo.
A matriarcalidade ainda é um ponto controverso. Alguns antropólogos consideram que alguns grupos humanos primitivos eram matriarcais, baseados numa idéia que eu considero ingênua: o pertencimento a tribo era determinada pela filiação. Eu pertenço à tribo “A”, eu pertenço à tribo “B” em função da minha ascendência, e a ascendência materna é segura. Nós sabemos com certeza que este sujeito descende da mãe, mas não tínhamos certeza efetivamente se ele ascendia do fulano, do ciclano. A descendência matriarcal determinaria uma prerrogativa de poder maior para as mulheres destes grupos pré-históricos organizados de uma maneira nômade. É uma tese que existe, mas que ainda é controversa e do ponto de vista antropológico e sociológico ela é frágil, pois os grupos humanos se organizam com base na distribuição de poder, e não interessa muito para isto (o poder enquanto conceito sociológico), estas determinações biológicas. Não interessa se ele descende efetivamente de fulano ou de beltrano, basta que o fulano tenha suficiente poder para dizer que sim, que ele descende dele, para que isso sociologicamente seja fato. Não é necessária essa comprovação. Os meandros do poder são muito mais sutis do que visíveis. Essa tese é um pouco ingênua. Eu normalmente não me filio a essa corrente. Eram patriarcais, sim. O poder pertencia ao homem mais velho daquela ascendência, daquela linha de derivação. Era essa a forma de distribuição de poder nesses grupos. Se algum momento esses grupos foram matriarcais, foi bem lá no início. O matriarcalismo não se impôs. O patriarcalismo sim se impôs ao ponto as sociedades antigas serem eminentemente matriarcais – falo de gregos, romanos e de todo o direito que deriva deles, essencialmente patriarcal. Há um ascendente mais velho que tinha todo o poder dentro daquela tribo. É uma características dos nômades.
Esta questão de presenças culturais essencialmente tribais diz respeito a uma observação que eu preciso fazer: não há nenhuma noção de indivíduo nestas tribos, indivíduo como alguém que não se divida, noção de pessoa como sujeito autônomo de direitos etc. Não há. As noções todas dos nômades são tribais e comunitárias. O que é bom é o que serve à comunidade, o que é mau é aquilo que não serve à comunidade. O que vale é o que preserva a comunidade, e não vale o que fragiliza a comunidade. Toda a lógica é em função da comunidade e não do indivíduo, se é bom para o individuo é indiferente. Se não vale para a comunidade, então aquela percepção, aquele desejo, aquele suposto direito teria sua expectativa frustrada, pois se não vale para a comunidade, não vale. Essas são noções tipicamente tribais. Todo um raciocínio social, portanto também protojurídico não poderia se fazer pela idéia de individuo. O que vale é aquilo que vale para a comunidade.
(continua...)

segunda-feira, 12 de março de 2012

Isto é mesmo um Juiz?

Do Jornalista Lúcio Flávio Pinto, sobre um episódio lamentável da justiça paraense, ao qual devemos dar repercussão. Em breve comentarei o post.
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Isto é mesmo um Juiz?

Em junho de 2006 Amílcar Roberto Bezerra Guimarães era (e continua a ser) o juiz titular da 1ª vara cível do fórum de Belém. Tinha centenas de processos para instruir e julgar. Mesmo assim foi designado para ocupar interinamente a 4ª vara cível da capital paraense. Responderia pela função durante os três dias em que a titular, Luzia do Socorro dos Santos, estaria no Rio de Janeiro, fazendo um curso técnico.
Mas o primeiro dia da interinidade não contou. A portaria de nomeação tinha erro e precisou ser refeita. Na quinta-feira o juiz não apareceu na 4ª vara. Nem no último dia, sexta-feira. Mas mandou buscar um único processo, volumoso, com 400 páginas e dois anexos.
Quatro dias depois, na terça-feira da semana seguinte, ao devolver os autos, o juiz Amílcar Guimarães juntou nele sua sentença, de cinco páginas e meia. Como desde o dia anterior a juíza titular reassumira o seu lugar, a sentença era ilegal. Para ludibriar a lei e os efeitos da portaria do presidente do tribunal, o juiz datou sua peça como se a tivesse entregue na sexta-feira.
Além de violar a lei e ofender os fatos, testemunhados por todos que trabalhavam na 4ª vara, inclusive seu secretário, que expediu uma certidão desmentindo o juiz substituto, Amílcar cometeu outro erro: ignorou o implacável registro do computador. E lá estava gravado: ele só entregou o processo e a sentença na terça-feira, quando já não tinha jurisdição sobre o caso.
Mesmo assim a sua decisão foi confirmada diversas vezes pelos desembargadores que, na 2ª instância, apreciaram diversos recursos que opus contra a sentença. Ela me condenou a indenizar, pelo dano moral que eu lhe teria causado, o maior grileiro de terras de todos os tempos, o empresário Cecílio do Rego Almeida.
Ele se disse ofendido pelo tratamento que eu lhe dera, de "pirata fundiário". Sua grilagem abrangia 4,7 milhões de hectares, o equivalente a um quarto do território do Estado de São Paulo. Pirata fundiário igual nunca houve. Nem com a mesma suscetibilidade, provavelmente falsa.
Não consegui a punição do juiz fraudador nem a reforma da sua sentença absurda. Depois de 11 anos tentando fazer justiça, desisti da justiça. Não recorri mais da manutenção da sentença e decidi pagar a indenização ao grileiro.
Como não tenho dinheiro para isso, recorri ao público. Aproveitei para denunciar a vergonhosa parcialidade do poder judiciário do Pará. Em menos de uma semana a subscrição alcançou o valor atualizado da pena, estimada em 22 mil reais. No dia da execução da sentença, as vítimas desse crime da justiça irão ao suntuoso palácio do tribunal apontar-lhe a culpa e a responsabilidade.
A grilagem não deu certo: a justiça federal a anulou, no final do ano passado. Talvez os sucessores do grileiro tenham perdido o prazo do recurso ou decidido não recorrer, tal a evidência da apropriação ilícita de terras do patrimônio público. Mesmo que recorram, sua causa está perdida, tal a contundência das provas dos autos.
Quando parecia que não havia mais nada capaz de aumentar o escândalo nessa história, o juiz Amílcar Bezerra voltou ao palco. Desta vez, numa das redes sociais da internet. Por livre e espontânea vontade, sem qualquer provocação, fez esta primeira postagem no seu Facebook:
"O jornalista Lúcio Flávio Pinto ofendeu a família Maiorana em seu Jornal Pessoal. Aí o Ronaldo Maiorana [um dos donos do grupo Liberal, afiliado à Rede Globo de Televisão] deu-lhe uns bons e merecidos sopapos no meio da fuça, e o bestalhão gritou aos quatro cantos que foi vitima de violência física; que a justiça não puniu o agressor etc...
Mais tarde, justa ou injustamente, o dito jornalista ofendeu o falecido Cecílio do Rego Almeida. A vítima, ao invés de dar o…s sopapos de costume, como fez o Maiorana, recorreu CIVILIZADAMENTE ao judiciário pedindo indenização pela a ofensa.
Eu fui o juiz da causa e poderia ter julgado procedente ou improcedente o pedido, segundo minhas convicções.
Mas minha decisão não valia absolutamente nada, eis que a lei brasileira assegura uma infinidade de recursos e o juiz de primeiro grau nada mais faz do que um projeto de decisão que depende de uma série de recursos a ser confirmada pelos Tribunais.
Tomei uma decisão juridicamente correta (confirmada em todas as instâncias), mas politicamente insana: condenei a irmã Dorothy [assassinada no Xingu com seis tiros por pistoleiros um mês depois da agressão física que sofri em Belém] do jornalismo paraense em favor do satanás da grilagem.
Aí o jornalista faz um monte de insinuações; entre elas de que fui corrompido etc…
Meu direito de errar, de graça ou por ignorância, não foi respeitado. A injustiça tinha necessariamente que resultar de corrupção, não é Lucio?
Detalhe, é que a condenação foi ao pagamento de R$- 8.000,00, de maneira que se eu tivesse sido comprado seria por um valor, imagino, entre 10 e 20% do valor da condenação.
Isto é o que mais me magoa; isto é o que mais me dói: um magistrado com a minha história; com o meu passado, ser acusado por um pateta como LFP de prolatar uma sentença em troca de no máximo R$- 1.600,00.
Pensei em dá-lhe uns sopapos, mas não sei brigar fisicamente; pensei em processá-lo judicialmente, mas não confio na justiça (algo que tenho em comum com o pateta do LFP).
Então resolvi usar essa tribuna para registrar o meu protesto.
Mas se o Lúcio for realmente MACHO e honrar as calças que veste, esta desafiado para resolver nossas pendências em uma partida de tênis.
Escolha a quadra, o piso, as bolas, o local, data e hora,
CANALHA!!!!! "
Seguiu-se um segundo post:
"Eu quero me aposentar. bem que esse otário do LFP poderia fazer uma reclamação no CNJ. Juro que não me defendo e aceito a aposentadoria agora. Me ajuda, babaca!!!!!!"
Você não deve acreditar no que está lendo. Leia e releia com atenção. Embora estarrecedor para a imagem e a credibilidade da justiça brasileira, é a verdade. Que, com sua participação, comentarei na próxima coluna

sexta-feira, 2 de março de 2012

Teoria da história: terceira aula: tempo e história

Em continuação...

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O tempo, ele próprio enquanto conceito, é um produto histórico. Não é o tempo que gera a história propriamente, mas é a história que cria o conceito de tempo e ele muda ao longo da história. O conceito de tempo não é o mesmo conceito, não diz respeito às mesmas coisas ao longo da história. O conceito de tempo também muda, também se altera. Ele também se relaciona com seus tempos históricos e absorve a visão de mundo que aqueles tempos históricos lhe depositam. O tempo do relógio não é o conceito de tempo – é um conceito de tempo. É o conceito de tempo da modernidade, do capitalismo, da indústria. È aquele que determina que horas nós devemos nos levantar para trabalhar, que horas se dará o intervalo do trabalho e que horas termina o trabalho para recomeçarmos no dia seguinte. Não é o tempo da vida – é um conceito específico de tempo ligado diretamente a um conjunto de relações de produção que são as que dominam já há pelo menos três séculos. A forma como nós nos organizamos socialmente – é uma percepção. A percepção do tempo dos gregos era diferente. A percepção do tempo dos medievais é uma percepção diferente. Então, a que tempo exatamente nós estamos nos referindo? E que percepção nós podemos ter dessas relações entre o tempo e a história?
Primeira afirmação que gostaria de fazer: não há um conceito ou percepção unívoca de tempo. O tempo é também um conceito que convive com pluralidade semântica – nós temos mais de um conceito ou mais de uma percepção possível de tempo. Segunda afirmação: não há um tempo físico. O conceito de tempo é um conceito social. “Sandro, eu não posso acreditar nisso... Um dia eu fui criança e hoje eu não sou mais. Um dia eu fui adolescente e hoje eu não sou mais. Um dia eu tive vinte anos e hoje, infelizmente, eu não tenho mais. Nós nos rescindimos e regozijamos com essas mudanças. Nós observamos as mudanças no corpo, as mudanças nos nosso atos e nossas vontades – logo, há um tempo. Isso não é social, existem mudanças que acontecem em nós fisicamente, biologicamente”. Tudo bem, eu não estou negando que haja mudanças biológicas e físicas. Eu só estou negando que nós possamos nos referir a elas como “tempo”, como se alguma coisa externa atuasse sobre essas mudanças. As mudanças biológicas e as mudanças fisiológicas são como são – simples assim. Que alguma força externa atue sobre isso é uma outra coisa. Isso já é uma derivação, já é algo que criamos para poder nos situar socialmente nessas mudanças. “Antes eu fui criança, depois fui adolescente e agora eu sou adulto”. Nós organizamos socialmente essas mudanças que são psicológicas, biológicas, orgânicas... O conceito não é biológico ou orgânico. O conceito de tempo é sempre social.
Contarei uma historieta que vem de um livro belíssimo, inclusive, chamado A flecha de Deus”, de um importante escritor africano chamado Chinua Achebe, cuja temática diz respeito ao tempo. O que fala o livro? Fala de uma comunidade isolada no interior da África que começa a conviver com uma missão inglesa e procuram manter uma distância entre si - tanto a missão estrangeira como a comunidade africana. Mas isso vai ficando cada vez mais tenso e o que é mais interessante no livro é o confronto entre percepções diferentes de mundo e a linha que o autor escolhe para mostrar o quanto essas concepções que organizam cada uma dessas culturas é diferente é o conceito de tempo. A comunidade africana, cujo líder é o personagem principal – ele é o único na aldeia capaz de determinar o período de início da plantação e o início do período da colheita dos alimentos -, organiza há séculos essa ciência de quando se pode plantar e quando se pode colher através das fases lunares, que é, dizem os antropólogos, a primeira forma de organização de tempo que as comunidades humanas dispõem. E ele mede, de uma forma muito instigante, esses tempos de plantar e colher. Quando a lua sorri eles podem plantar. Quando ela fica triste eles podem colher. Ele se refere desta maneira – hoje nós diríamos, sem nenhum romantismo, é a lua cheia, é a lua minguante. Ele mede que a lua sorri quando ela é cheia e ela está triste quando é minguante, e sabe quantas fases ele tem que medir pra isso. Então ele não chama de lua cheia, lua nova, lua crescente, lua minguante. Ele estabelece uma espécie de relação com a deusa e ela fala alguma coisa para ele - mas não é para todo mundo na comunidade, é uma relação específica com o líder da comunidade. Ele é o que pode interpretar. A história da camisa que o sangue amarela no filme Abril Despedaçado é também uma maneira de medir o tempo. Há uma maneira de medir as vidas: se o sangue amarela ou se não amarela, o tempo que decorre é o tempo para medir a vida de um determinado personagem. E não é toda e qualquer pessoa que pode ver. É uma pessoa que vai dizer se amarelou ou não. Pode haver um monte de gente ao redor, mas é ele, o patriarca, que dirá “amarelou”. Aí há inúmeras relações com as comunidades anteriores à escrita. Do mesmo modo, na obra  de Chinua Achebe, quando os conceitos de tempo são introduzidos e outras técnicas agrícolas são introduzidas na comunidade a partir da cultura dos missionários, o líder começa a perder o seu poder na comunidade. Descola-se a base desse poder, dessa sabedoria ancestral que está ligada a uma relação específica entre o líder e a lua e, portanto, de uma forma específica de medição de tempo, e ela vai sendo progressivamente destituída pelos métodos agrícolas, pelo calendário, e pela forma ocidental de tratar o tempo e a produção. Aquela comunidade começa a deteriorar rapidamente porque a liderança que era baseada nessa forma específica de hermenêutica - de uma interpretação específica do tempo -, vai sumindo de maneira muito rápida e ele próprio começa a se questionar sobre isso: o que ele é. O seu saber não tem absolutamente nenhum valor.
Essa é uma forma específica de tempo porque não diz respeito apenas à medição do trabalho – diz respeito a uma maneira específica de liderança e de convivência com as pessoas da comunidade, coisa que não se compreende hoje na nossa forma de entender o tempo. O tempo é medido de maneira independente. Lá não era uma força sem nome, a força temporal é uma deusa específica e que fala com uma pessoa específica. Essa despersonalização não é uma coisa que a comunidade entendesse. A maneira como nós temos de entender o tempo hoje está ligada a essa concepção específica de tempo: é o tempo cronológico, ou o tempo chronos, ligado ao deus Chronos da mitologia grega. É uma concepção válida de tempo – ela tem uma série de derivações com as quais nós convivemos na nossa mentalidade moderna hoje.
Primeiro: o tempo crônico ou o tempo cronológico é um tempo linear. É uma característica inafastável dele. É um tempo que não volta – por isso “A flecha de Deus”, é a forma tradicional de se definir esse tempo. Lançada a flecha, ela não retorna. A maneira que nós temos de tratar o tempo linear, esse atropelo que o tempo provoca, está impregnada na nossa cultura, nas nossas expressões. Inclusive nos referindo ao próprio personagem mitológico Chronos – ele devorava os seus filhos. “O tempo nos devora, o tempo nos engole, o tempo nos atropela”. “O tempo não volta atrás, não dá para recuperar o leite derramado” e por aí vai. As nossas expressões denotam muito isso.
Denotam também uma outra característica. A primeira é a linearidade. A segunda, a subjetivação do tempo. Dizendo de maneira literal: nós transformamos o tempo em um sujeito diferente de nós. Nós nos referimos a ele na língua portuguesa – e em todas as línguas latinas – desta maneira, como um sujeito, tanto que é precedido de artigo. O tempo. Nós subjetivamos o tempo, transformamos o tempo num sujeito. Isso significa que ele interfere nas nossas relações ou pelo menos nós compreendemos na linguagem que é assim. As nossas expressões denotam isso. “O tempo a tudo cura. O tempo é o melhor remédio, é o melhor conselheiro. O tempo” é alguma coisa estranha a nós e que interfere sobre os nossos humores, sobre as nossas relações, sobre as nossas expectativas... Assim entendemos que ele interfere também na história. O tempo cria a história – que tempo? Quem é esse sujeito? Não há esse sujeito, esta é uma figura da nossa linguagem. Essa é uma forma específica de entender o tempo e a relação que nós estabelecemos em razão dele.
Então a característica da linearidade e a característica da subjetivação eu já expliquei. Uma outra característica também é importante: essa linearidade e essa subjetivação que nos leva a pensar que o tempo interfere nas coisas levam a uma concepção específica de história - concepção de que as coisas de hoje são melhores do que as de ontem. A linearidade importaria num progresso. “Nós melhoramos”. “Por que estamos na história?”. “Porque precisamos melhorar”. O que era ontem é inferior ao que nós temos hoje. O homem de antes era um homem que sabia menos, um homem inculto, bárbaro, selvagem e hoje nós somos melhores, a humanidade avançou, evoluiu, progrediu. Essa linearidade compreende uma noção de progresso, não apenas de transformação, mas de transformação para o melhor. Uma outra concepção aliada a essa da linearidade e da subjetivação é a de que nós estamos indo para algum lugar, assim como uma flecha sai de um arco e vai cair em algum momento – ela pára, em algum momento ela atinge seu objetivo. Então isso aconteceria também com o tempo humano, o das coisas humanas.          Se nós estamos melhorando entre o ontem, o hoje e o amanhã, em algum momento nós atingiremos aquilo que se tornou jargão na filosofia da história do século XIX: o fim da história, um ponto máximo de evolução, a partir do qual nada mais há.
Essas idéias, ainda que aqui e acolá, possam soar um pouco exóticas, estão conosco e são relativamente comuns. No início da década de noventa, tornou-se célebre Francis Fukuyama com o livro denominado O fim da história, e foi proclamado um intelectual extraordinário e virou modismo, inclusive, citar Fukuyama. O fim da história para ele era a democracia norte-americana. Nós atingimos o ápice da história humana com a afirmação absoluta dos conceitos de liberdade e que tornar-se-iam um padrão para todo o mundo e não apenas o Ocidente. O resto seria transformações e adaptações para esse modelo e tínhamos atingido o fim da história. Eu não sei se ele está vivo, pois foi muito contestado alguns anos depois caiu em desgraça, para ver aquilo que a história realmente nos diz: que todos os impérios encontram o seu fim. Todos eles, do romano ao mongol e não seria diferente com o império americano e talvez estejamos neste momento a sua derrocada, que durou muito menos – se realmente estiver caindo agora – que todos os outros que eu mencionei ainda há pouco. Historicamente, todos os impérios têm fim e não será diferente com o império norte-americano.
Essa noção de fim da história é uma noção problemática – como a noção de linearidade e a de subjetivação. Todas elas estão ligadas a uma concepção específica de tempo, que é o tempo crônico. Qual é o problema, efetivamente? Primeiro: a idéia de linearidade é uma idéia equivocada, ainda que fácil e cativante, porque é fácil de explicar e entender. Todos nós conhecemos e já nos deparamos com essas figuras – que se tornaram inclusive parte do marketing hoje, dos anúncios publicitários – como aquela linha de evolução do hominídeo ao homem, que começa com o macaco andando ainda nas quatro patas e vai se tornando bípede até chegar ao homem moderno. Do hominídeo até o sapiens sapiens, um atrás do outro. Essa figura é muito encantadora e muito fácil de entender também – mas ela é tão fácil quanto equivocada. Hoje é absolutamente demonstrado – e ninguém mais acredita no contrário – que a evolução dos hominídeos ao homo sapiens sapiens não se deu na forma de uma linearidade, mas na forma de uma grande árvore. De cada uma dessas espécies pode-se ter inúmeras variações que eventualmente resultaram em algumas espécies que se acabaram e outras que foram prosseguindo e nem todos os elos estão fechados – não se sabe exatamente o que nos traz de um Neandertal para um sapiens sapiens. Então, nem todos os elos se fecharam, a coisa não é tão simples: não é saber quem é o próximo na linha. Alguns deram certo, outros não – alguns desses nós nem sabemos, eventualmente, quem são. Os fósseis não apareceram. Então esta árvore está cheia de buracos. São várias ramificações diferentes – algumas se tocam, outras nunca se tocam. Algumas se encontram lá na frente, outras se encontram aqui, mas não tiveram continuidade. É muito mais complexo.
Eu tenho dito sempre – e isto é uma das outras funções da ciência – as coisas só são simples se observadas de longe. Qualquer coisa observada de perto não é bem assim. Elas nos parecem simples, mas se nós fizermos a crítica, a pergunta da qual nasce uma outra, e uma outra, elas nunca são tão simples assim. As crianças conseguem nos demonstrar isso entre os sete e oito anos de idade. Elas perguntam a primeira vez e você dá uma resposta mal-acabada, perguntam a segunda vez e você tem que elaborar um pouquinho mais, perguntam a terceira e você descobre que nunca pensou naquilo. E aí vai dizer “porque sim” e a conversa acaba rapidamente desta maneira. O que está acontecendo neste momento é precisamente a suspensão da crítica – você nunca se deu o trabalho de pensar, efetivamente, naquilo.
Se pensarmos um pouco sobre a linearidade do tempo (a primeira característica), nós não sabemos exatamente porque definimos isso como linear, como uma flecha, se as duas perguntas essenciais para se definir uma linearidade nós não temos: de onde viemos e para onde vamos. Nós sabemos alguma coisinha do que está, mas não sabemos do início e não sabemos o fim. Em termos científicos - eu não estou falando de fé – nós não sabemos. Temos suposições, e de qualquer maneira, ainda que a ciência tenha suposições sobre o início, ela não tem suposições sobre o fim. A ciência não é prognóstica: quando ela entra na futurologia, aproxima-se mais das profecias do que da metodologia da ciência porque as variáveis são incontroláveis. Então, para definir uma linearidade eu preciso de um início de um fim. Quando eu traço uma linha no quadro, eu tenho um início e um fim e eu vou dizer “isto é uma linha reta. Eu tenho certeza. Eu coloquei um início nela, eu coloquei um fim”. Mas onde é o nosso início e onde será o nosso fim? Nós não sabemos! Como podemos saber, então, que isso é uma linha?
Segundo problema relativo á concepção cronológica de tempo: nós estamos efetivamente progredindo? Quer dizer, nós podemos definir como uma premissa da evolução do tempo histórico que cada passo humano é um passo humano necessariamente para frente? Há problemas nessa afirmação, problemas severos. Como já expliquei que se não sabemos o início e não sabemos qual é o fim – nós não sabemos sequer se é uma linha -, como eu posso dizer que cada passo humano é um passo pra frente, se nós estamos sabe-se lá onde? Como é que nós podemos definir que se trate de progresso? “Sandro, para isso não é necessário fazer muito esforço, é só observar o que nós somos hoje e comparar com o que nós éramos antes, na época em que vivíamos em cavernas”. Eu não estou falando de apropriação de bens primários, eu não estou falando de patrimônio, eu não estou falando de conforto... Eu estou falando de características humanas e da nossa forma de relação e apropriação do que nos cerca. Se nós fizermos uma comparação nessa perspectiva – não se temos mais carros do que os homens das cavernas, porque essa é uma comparação fraca -, se nós compararmos a coisa do ponto de vista da fome ou das guerras, nós perdemos. Perdemos porque a fome na pré-história – e durante boa parte da história – está associada a uma condição natural: a escassez de alimento. A fome hoje não é associada à escassez de alimento porque nós temos pra todos, mas à distribuição de renda. Isso é mais cruel, do ponto de vista moral, do que a escassez. Na escassez eu não tenho o que fazer, então, na fome, o meu pirão primeiro. Agora, se temos pra todos, mas ainda se morre de fome, o problema não é a escassez, o problema é a distribuição daquilo que nós criamos socialmente. A morte nas guerras tribais dos nômades durante a pré-história, ainda que pudesse ser violenta, é uma coisa muito mais selvagem, impulsiva, do que uma guerra que você anuncia há muito com armas de destruição em massa, ou guerras civis que matam milhões de pessoas e mesmo com toda essa mídia nós nem sabemos acontece, nesse exato momento, em dois países do interior africano. Não há um critério para nós medirmos esse progresso – é isso que eu estou querendo dizer. O critério material não serve, ele não nos ajuda em nada. A acumulação de riqueza não pode ser associada a progresso, primeiro porque é um fator econômico absolutamente instável e segundo, porque ele não diz respeito a algo da natureza humana. Diz respeito a uma criação contemporânea presencial. Nós não temos como dizer que a história humana caminha para o progresso a partir de critérios dessa natureza.
A linearidade é um elemento que eu já critiquei. O progresso dessa linearidade eu eliminei – e o subjetivismo? O tempo será entendido aqui nesta disciplina não como um sujeito exterior ao homem, mas como uma criação das relações sociais. O tempo é um conceito, um instrumento - aquilo que o Norbert Elias chama de síntese -, porque é um conceito que muda ao longo da história. É uma síntese criada para denominar e organizar relações sociais. Ele começa em uma coisa bem básica, visível. Suas raízes são, de início, bem visíveis, como a de uma árvore jovem. Na organização da agricultura e nas relações de produção que o homem constrói quando começa a dominar e a desenvolver as técnicas agrícolas – é aí que surge o conceito de tempo. É aquilo – não é um sujeito externo, não é algo que interfira sobre o corpo humano – que eu meço entre o plantar e o colher. É o número de estações da lua. Depois são as estações climáticas. Eu começo a definir quantas luas eu preciso ter para que aquilo que eu plantei hoje possa estar madura pra colheita depois. Essa diferença entre o antes e o depois não é uma diferença para a alma humana nem para explicar o sentido da nossa vida – pelo menos em seu princípio. Esse conceito de tempo é um conceito que organiza uma relação de produção específica entre plantar e colher. É uma técnica dessas relações sociais. Eu crio o conceito para me referir a alguma coisa específica do mundo. Eu crio esse conceito e com ele uma realidade específica. É síntese, como denomina Norbert Elias, porque existem determinados conceitos humanos que nós utilizamos hoje com sentidos tão diferentes que não nos interessa mais saber como nasceram. Nós não associamos mais, hoje, o tempo, a essa raiz dos trabalhos agrícolas, ao domínio da técnica agrícola – isso para nós é até indiferente. Nós nos referimos a tempo de diversas outras formas que não necessariamente essa. Nós já falamos do tempo de vida, do tempo das nossas expectativas, do nosso planejamento de estudo. Isso é uma síntese: é o conceito que muda de maneira tão drástica, mas ele permanece lá, na sua forma, da qual se desenraiza. Nós temos diversos deles no direito. O tempo é um deles. Liberdade, igualdade, propriedade, posse, pessoa – todos esses conceitos não foram inventados ontem, nem anteontem. Esses conceitos migraram com as diferentes gerações da humanidade, mas com sentidos muitas vezes radicalmente diferentes daqueles que tinham na sua origem. Família: o homem romano não entende a família como nós entendemos. Era uma coisa radicalmente diferente. As famílias não estavam sequer ligadas por laços que poderiam ser considerados afetivos. Isso era indiferente para a civilização antiga. O conceito de afetividade ligado à família é um conceito do século XVII. Historicamente isso [a distância temporal] é nada. Bem aqui, nas nossas costas. Nós assistimos os filmes e imaginamos como elas deveriam ser antes... Elas só eram um pouquinho mais toscas e se vestiam de maneiras diferentes, mas é como se fosse a mesma coisa! A gente assiste nos filmes e eu fico sempre estupefato com isso. Papai, mamãe, a mesma forma de relação, as mesmas expectativas... Parece-nos um absurdo que essas relações pudessem ser de maneira diferente, mas eram radicalmente diferentes. Radicalmente diferentes – o papel da mãe, o papel do pai, dos filhos, os animais fazendo parte da família juridicamente. O animal não era um patrimônio. A diferença é brutal.
As sínteses nos ajudam a entender como é que a história acontece e que tipo de observação – de tempo – nós precisamos ter em relação a ela. E nisso eu me aprofundo agora. A noção de tempo que nós precisamos construir aqui está muito distante da linearidade e muito mais próxima de um conjunto superposto de descontinuidades e de simultaneidades. Quero dizer, a concepção linear, em regra, nos lança diante de um vício histórico que é o da sacralização do presente. Nós tendemos a observar tudo o que já passou como se fossem formas menos evoluídas do que nós temos hoje, mas são basicamente a mesma coisa. Nós impomos garganta a baixo do passado a visão do presente. Isso é um pecado histórico. Nós chamaríamos a ele de sacralização do presente ou, de maneira um pouco mais jocosa, mas didaticamente funcional, é o “complexo Flintstone” do historiador – que alguém da pré-história já comemorasse o Natal. Nós imaginamos que eles são a mesma coisa que nós só menos evoluídos, menos inteligentes, vestem-se de uma maneira distinta e não possuem tanta tecnologia. Mas não funciona assim. Os tempos históricos devem ser observados enquanto seus próprios presentes, com todo o horizonte de expectativas que estava diante deles. Hoje, observando as coisas que aconteceram, nós procuramos criar linhas de causalidade entre as coisas que aconteceram e explicar uma a outra e parece-nos que era inevitável que as coisas de hoje acontecessem como são, porque elas vieram disto, disto, daquele outro, outro... É como se fosse uma linha só. Observem: nós utilizamos isso na nossa vida cotidiana, nas nossas justificações proto-históricas.
Eu costumo citar esse exemplo em sala porque nos ajuda a ilustrar um pouco a coisa. Nos relacionamentos afetivos, aquele belo jantar que o namorado oferece à namorada ou vice-versa... e um diz ao outro: “tudo que eu vivi foi exatamente para chegar aqui com você nesse momento”. Aí toca aquela música e fica um negócio brilhante. Nessa hora chega o champanhe e fica extraordinário. Vamos manter esse nível de romantismo – isso é interessante, mas do ponto de vista histórico isso é uma fraude. Do ponto de vista científico isso é uma fraude rematada, absoluta. Agora, existem determinados momentos em que a verdade não cabe. Ou seja, diria eu jamais num momento desses “quando eu te conheci na verdade eu sequer sabia que existiríamos. Nunca me passou pela cabeça que nós pudéssemos estar juntos aqui. Na realidade naquele dia eu estava pensando em outra pessoa. A minha vida era outra, meus planos eram completamente diferentes.” Se você quiser acabar rapidamente com este jantar, vá por essa direção. Não é isto que eu estou recomendando. Agora, historicamente, às vezes, nós cometemos o mesmo pecado – isto que não apenas é permitido mas recomendável na nossa vida afetiva não pode ser transposto para a ciência da história. Eu não posso dizer que necessariamente que aqueles eventos foram a única possibilidade de acontecimento na sua época. O que acontece, a bem da verdade, é que, para tudo o que aconteceu, diversas outras possibilidades de acontecimento foram descartadas, mas cada uma delas levaria a uma combinação de resultados imprevisível. Não é assim a nossa vida hoje? Nós temos expectativas, planos, nós achamos, em algum momento, que dominamos ou temos algum grau de controle sobre esses planos. Todos resolveram fazer vestibular ou vestibulinho em Direito, já estão planejando a vida para daqui a cinco anos e “amanhã eu sei o que eu vou fazer...”. “O que você vai fazer amanhã?”. Eu digo minha agenda... Eu posso morrer! Começando por aí... Posso ser seqüestrado ou, pra evitar ficar nessa linha da premonição do mal, posso receber uma proposta excelente de emprego e o cara me diz “tens dez minutos pra decidir e vinte pra embarcar”. Pode ser isso.
Ou seja: nós temos expectativas e dentre uma série delas algumas se confirmarão e eliminarão as outras que deixarão de existir e sequer serão lembradas. Quando nós narramos a nossa vida pessoal a tendência é nós selecionarmos apenas as coisas que nós achamos que foram relevantes porque nos trouxeram aonde nós estamos e justificamos, às vezes descaradamente: “tinha que ser assim!”. Nós nem temos explicação, exatamente porque aconteceu da forma que aconteceu. “Só podia ser isso”, “estava escrito nas estrelas”. Justificamos dessa maneira.
Historicamente não dá ou, se dá, porque efetivamente é possível, é equivocado. Essa história nova que nos chamamos de uma história de evento é uma história que deve procurar estudar o passado como ele era enquanto presente, ou seja, os atores desse passado desse tempo histórico não sabiam exatamente o que ia resultar dos seus atos, ou se tinham uma convicção inabalável (porque algumas pessoas realmente são assim), eles não tinham controle – era uma possibilidade. As histórias, em regra, não derivam disso, então nós temos que ter muito cuidado nessa descrição. O tempo, aí, não é o tempo linear, é isso que eu estou querendo dizer. Uma coisa engatada na outra e na outra como se fosse uma locomotiva puxando os seus vagões... Porque cada vagão tem a sua história específica. Em algum momento um fato aconteceu e uma série de outros deixaram de acontecer. Nós não podemos encadear os elementos como se necessariamente fosse daquela maneira, como se estivesse “escrito nas estrelas”, ou como se o destino pesasse sobre a história, porque não é assim que funciona. Se nós retrocedermos ao tempo para estudar o passado no seu momento e no seu contexto como se presente fosse, a nossa preocupação não será descrever a linearidade – será a de descrever a singularidade. Nós vamos procurar observar tudo o que está no entorno e não uma linha que me levou ao futuro e que, naquela época, eu nem saberia qual seria. A linearidade me ajuda a explicar as coisas de uma maneira tosca, falsa, no mais das vezes. A circularidade é uma outra concepção de tempo porque leva em consideração a pluralidade dos tempos possíveis que são distintos entre si, inclusive. Um problema do tempo linear é que nós tendemos a massificá-lo para tudo o mais nas nossas vidas. O mesmo tempo linear que é o tempo do relógio, que mede os nossos trabalhos – percebam isso -, hoje é o que mede os nossos afetos, os nossos sonhos, nossas expectativas... Hoje, os nossos afetos são tão lineares e tão enquadrados nessa figura linear que isso já passou pro plano da nossa linguagem. Como os alunos do semestre passado me diziam: “professor, a fila anda”. Quer alguma coisa mais linear do que a fila? É rápido, decida, se não, vá se embora, não fique me impregnando porque eu tenho outra coisa pra fazer. Nós transferimos para os nossos afetos essa concepção que tem se tornado titânica e tirânica de tempo que está ligada ao tempo do relógio da praça que mede o início e o fim do trabalho. Transpor isso pra todos os aspectos da nossa vida é uma das grandes razões das doenças do século XX e que estão aí no século XXI – o stress, a depressão, ligados à ausência de tempo para pensar sobre si, sobre suas coisas.
O tempo é plural: o tempo do relógio não é o mesmo tempo que as nossas consciências se formam, que a nossa maturidade se forma, não é o mesmo tempo que nós temos para aprender ou desaprender. Esses tempos são tempos distintos. Os gregos denominavam um tempo da democracia: kairos é um tempo que se suspende. O tempo da democracia grega se suspendia porque é necessário que amadureçamos o debate para que possamos tomar uma decisão. Não é “pra ontem” a decisão. Não é o tempo do aperfeiçoamento da cultura, do aperfeiçoamento da formação da psique. As crianças evoluem em tempos diferentes. Não dá pra dizer “completastes agora sete anos, daqui em diante já terás isso, isso e aquilo porque a tua mente já está formada nesse e naquele sentido”. Os homens e as mulheres têm tempos diferentes de formação e amadurecimento. Com dezoito anos alguns são protagonistas da sua própria vida e outros esperam o leitinho da meia noite... É diferente. Não dá pra nós medirmos a formação da nossa maturidade, da nossa psique, da nossa capacidade de decisão ou da nossa vontade pelo relógio, pelo calendário. Há tempos diferentes e nós sabemos disso, sentimos isso, mas o que nos domina é uma idéia tirânica de tempo cronológico, e somos exigidos de acordo com ele. Ninguém nos dirá, “toma o teu tempo, quando estiveres bem, tu avanças”. Nos dirão “rápido, tu tens aí uma semana, te vira, dá teu jeito”. São formas de relação de trabalho que a gente tende a espalhar para todo o mais. Os gregos eram muito mais sábios – nesse aspecto e em vários outros – porque a concepção de tempo (nós sabíamos e eles tinham a consciência) não pode ser uma concepção única, mas sim de tempo plural. Na história também é assim – isso que se aplica às nossas vidas se aplica à história, porque a história não está longe daquilo que é a nossa vida cotidiana. Ela não pode estar longe disso. As pessoas de ontem tinham também expectativas e a maior parte delas, como as nossas, jamais se realizará – mas algumas se realizarão. Seja porque fizemos por onde, seja porque demos sorte, mas a maior parte delas não se realizam por uma questão simples, e quase matemática: existem três ou quatro possibilidades e somente uma acontece. Sempre descartamos mais do que temos.
A história tem que recuperar essa forma de entender o evento humano, a participação humana no mundo, para poder reconstruir o tempo histórico como ele era ou o mais próximo disso. A primeira iniciativa é relativizar o tempo linear e considerar a pluralidade de tempos possíveis e a simultaneidade de mundos desses tempos. A pergunta final é: a história dá sentido ao tempo ou o tempo dá sentido à história? A história dá sentido ao tempo – o tempo é uma criação da história e das relações humanas. É ela que dá sentido ao tempo e não o contrário. Entender o contrário seria subjetivar o tempo, seria considerar o tempo um elemento estranho à história e não funciona assim. A história é que significa cada um dos seus tempos e é dentro dela que nós obtemos essa concepção pluralista de tempos possíveis. É com esse referencial que nós vamos trabalhar aqui. Essas duas primeiras aulas de epistemologia da história são para situá-los no meu referencial teórico a que nós vamos voltar de maneira recorrente.