sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Teoria da história: segunda aula

O texto a seguir é produto de degravação realizada pelos monitores da disciplina História do Direito e do Pensamento Jurídico, no CESUPA (Belém-Pa), e devido a isso seu tom é eminentemente oral.
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Na aula passada nós tratamos de um tema específico: a pluralidade semântica do termo história. Uma coisa eu gostaria de deixar bastante marcada dentre aquelas que conversamos na aula passada porque será uma preocupação constante da metodologia adotada por essa disciplina. Quando nós nos preocupamos com a precisão semântica de determinados conceitos, quando nós apresentamos a necessidade de definir o conceito sobre o qual estamos falando para depois falarmos alguma coisa a partir dele, nós não estamos simplesmente adotando alguma espécie de purismo metodológico ou excesso de zelo teórico a respeito de um determinado conceito ou de uma determinada linha da ciência. A definição de conceitos é a delimitação daquilo a que esses conceitos podem se referir. É a delimitação, portanto, do horizonte de alcance deles. Dizer o que é história e entender a história por isto ou por aquilo outro não é simplesmente batalhar teoricamente algum cuidado excessivo ou algum purismo teórico. É dizer o que o historiador pode fazer e o que ele não pode fazer. O que faz parte da história e o que não faz parte dela. O conceito traça esse horizonte. O conceito nos permite saber o que nós podemos estudar: o que pode ser tido como verdade e quais são as conclusões possíveis a partir dali. É muito mais do que simplesmente ficar trabalhando um jogo lexical (de dicionário) ou algum exercício de mentalização e memorização. Definir o conceito é, epistemologicamente, definir qual o horizonte de alcance daquele mesmo conceito. Dizendo de outra forma: é definir uma realidade específica. É uma forma de criação de mundos. Definir os conceitos nos permite dizer a que mundo nós estamos nos referindo e o que nós podemos ver a partir daqueles conceitos. Assim, também, quando eu defino o que eu posso ver - aquilo que está compreendido naquele conceito ou naquela área -, eu estou automaticamente dizendo o que eu não posso ver, o que não está compreendido ali.
Não está compreendida no mundo da história, se nós conceituarmos a história como uma ciência do homem no tempo, uma explicação de natureza sociológica. Não está compreendido na história, como seu objeto, como aquilo que ela possa atingir, a explicação das relações de poder dentro de uma determinada sociedade ou a definição de como funcionam os sistemas sociais – não é isso que está compreendido no conceito de história. “A ciência do homem no tempo”, se assim definirmos a história (e é um conceito ao qual eu já vou chegar com mais detalhamento, logo, logo), quando nós o fazemos [definir o conceito de história] nós delimitamos o horizonte daquilo que a história pode fazer e aquilo que ela não pode – aquilo que ela compreende e aquilo que ela não compreende. Foi esse o roteiro que seguimos na aula passada. Foi um roteiro que nos permitiu ver que há uma compreensão da história que é centrada em documentação. A história entendida como ciência – a geschichte histórica –, definida dessa maneira na virada do século XVIII para o século XIX, foi um conceito aurido pelo positivismo histórico. É a idéia de que tudo aquilo que interessa à história (ou está compreendido na história) é única e exclusivamente o que pode ser demonstrado a partir dos documentos históricos. Toda metodologia da história é uma metodologia centrada na análise documental. Quando eu defino a história dessa maneira – a história como uma ciência dos fatos do tempo –, eu estou definindo o que entra nela. Então aquilo que estiver no documento histórico, nos antigos registros, nos arquivos, nos processos da Mesa da Consciência e Ordens ou do Desembargo do Paço em Lisboa, se eu estudar [por exemplo] como funcionava a relação dos processos entre a colônia e a metrópole, como eram julgados os embargos ou os agravos ou as apelações que vinham das colônias do Império Ultramarino português em comparação com os processos que se davam em Lisboa. Os processos físicos, os documentos da época são documentos que podem me ajudar a entender isso. Estão arquivados, existem códices específicos em que esses documentos foram validados – então são documentos válidos. A história eu posso fazer a partir deles.
Mas e relatos folclóricos ou orais a respeito, que foram passados através de uma tradição familiar específica ou de várias tradições orais de uma cidade pequena a respeito de como era entendido o processo judicial no século XVI. Isso não poderia ser considerado, a partir de um conceito positivista de história, como história. O relato oral está para o domínio das lendas, está para o domínio da vida que não pode ser validado – eu não tenho como comprovar a validade daquilo a que ele se refere. Toda história dominada pelo positivismo histórico, por esse conceito de ciência histórica ligado estritamente a documentos, desprezou durante um longuíssimo tempo o folclore e as histórias orais. Desprezou durante muito tempo a tradição oral como se ela não dissesse respeito à história. Quando, no século XX, a revolução dos estudos históricos, seja com a escola de Frankfurt, seja, principalmente, com a escola dos Annales ou a história inglesa, trouxe de volta esses relatos orais e essas tradições como informação e fonte importante da história – como a literatura também, inclusive a literatura popular (no caso brasileiro, a literatura de cordel) -, quando o conceito de história se ampliou para entender a história não só como a história que vinha dos documentos e dos grandes fatos e dos grandes homens, mas uma história próxima do dia a dia, da vida privada das pessoas, ampliou-se a visão daquilo que era ou não história. Mudou-se o conceito, mudou-se a ciência, mudou-se aquilo que eu posso enxergar, aquilo que eu considero parte ou que eu considero fora dessa ciência. Não é, portanto, apenas uma questão de purismo vocabular. Não é uma questão de mentalização de um conceito. O conceito, quanto mais amplo, mais amplo ele define o horizonte daquilo que ele vê. E quanto mais estreito, mais estreito será o horizonte daquilo que ele vê. Então eu estou dizendo claramente pra vocês que hoje em qualquer banca de revista mais ou menos sortida nós conseguimos acesso à boa literatura sobre história. A história se popularizou, no caso brasileiro, de vinte anos pra cá. Existem excelentes publicações de, banca mesmo, sobre história: publicações profissionais como a revista de história da Biblioteca Nacional (excelente publicação) ou a História Viva. E você verá nelas tanto relatos sobre guerras, divulgação de estudos novos sobre a Segunda Guerra Mundial, a Guerra do Paraguai ou o conflito das Malvinas, assim como você verá a história da culinária numa cidade específica do interior do Nordeste brasileiro. E esta história dessa alimentação nessa determinada localidade é uma história que vai considerar as relações estabelecidas entre as classes ali, vai considerar a movimentação das pessoas dentro da cidade, hierarquias que eram estabelecidas, formas de relacionamento familiar. Ou seja, história alimentar era uma coisa impensável em termos históricos no século XIX. Não se acreditava que você pudesse escrever história alimentar. Não que os alimentos não tenham existido ao longo da história humana, mas aquilo não era considerado objeto da história – não era. A história privada não fazia parte da história. A história era “grandes homens, grandes fatos e grandes acontecimentos”. Agora, se há cem anos atrás nós comíamos ou não maniçoba aqui não era objeto histórico – ninguém estudava isso, assim como não estudavam as histórias das minorias, as histórias da vida privada de maneira geral. Uma história baseada em fontes, como exemplifiquei na aula passada, cotidianas para nós – como são dispostos os banheiros dentro das casas em Pompéia. Isso sempre esteve lá, ou pelo menos registrado e gravado historicamente desde que o Vesúvio explodiu numa erupção – isso ficou preservado, petrificado sob aquelas cinzas todas. Isto está lá, há séculos sem que isso pudesse constituir algum tipo de estudo histórico – isso nem passava pela cabeça dos historiadores do século XIX. Eles não são o objeto da história – grandes fatos. Mas como as pessoas se organizavam na casa e tendo como fonte histórica a disposição dos banheiros ou das camas jamais era considerado objeto histórico. O objeto histórico é aquele que está no arquivo – é aquele que está nos documentos. São as cartas entre os grandes generais, são os papiros dos antigos faraós, os contratos dos escribas – esses eram os documentos. Na medida em que o conceito muda a maneira como você vê a história muda também. Hoje nós não fazemos história apenas sobre Napoleão, Hitler ou Stalin. A história é dos anônimos também – há diversos personagens sem nome, sem rosto que compõem um trabalho histórico extraordinário do século XX. Essa é uma revolução conceitual. A
Ao mesmo tempo nós vimos um outro tipo de conceito na aula passada e eu procurei avançar um pouco – ainda que tenhamos que fazer essa consideração outras vezes aqui – quando eu coloquei um sentido de história no final da aula passada referindo-me à história ficção. À história contada – aquilo que é a história dos irmãos Andersen, a história da carochinha, contos populares ou folclore, tradição oral – nós chamamos de história também. Existe alguma proximidade entre a história contada por um Mommsen, por um Toynbee ou por um Marc Bloch e uma história como a da Chapeuzinho vermelho ou são conceitos absolutamente distintos? Hoje a doutrina histórica, que no século XIX afastava absolutamente a ficção – aquilo que se chamava de poiesis -, essa criação, essa invenção, da história dita científica, relativiza a proximidade entre esses dois conceitos. Porque nós entendemos hoje que ainda que a história enquanto ciência dependa da validade do seu objeto – seu objeto deve existir, porque senão não faz sentido o esforço científico histórico - porque é a busca da verdade que funda todo e qualquer esforço científico. Ainda que isto seja absolutamente indispensável, no trabalho do historiador existe sempre uma poiesis. Sempre. É incontornável essa existência. Esse obstáculo, essa dificuldade ou esse elemento são absolutamente indispensáveis ao trabalho do historiador por alguns motivos fáceis de demonstrar: o objeto da história, qualquer que seja ele – sejam os fatos históricos, seja o homem, seja o tempo ou seja todas essas coisas juntas -, não se trata de um objeto alheio ao homem ou externo a ele. Estudar, como exemplifiquei na aula passada, uma descarga elétrica, um raio, o movimento das marés ou a formação de uma tempestade, os cúmulos e os nimbos é estudar alguma coisa externa a quem estuda – é externo ao observador, “isto não nos pertence”. Agora, estudar as repercussões do holocausto para a cultura ocidental no século XX não é alguma coisa exterior ao homem. O objeto histórico se envolve com o historiador e vice-versa. Uma distância não só é possível como necessária, mas jamais a alienação. O historiador não pode alienar-se em relação ao objeto: alienar-se na literalidade da palavra – ele não pode “tornar-se estranho” ao objeto. Isso é uma falsidade epistemológica. Ele não pode se tornar estranho ao objeto que ele estuda e ele não pode se sentir um outro em relação à história porque ele faz parte dela. Por mais distante que esteja o fato que ele está estudando, ele possuirá sempre condicionamentos os quais ele deve reconhecer presentes e tratar de tal maneira que esses condicionamentos não influenciem na deturpação inclusive daquilo que ele está estudando. Dizendo de outra maneira: para que aquilo que o historiador observa não seja uma coisa que convença apenas a ele, mas aquilo que possa ser definido como válido por toda uma comunidade científica. Mas ele traz consigo preconceitos, visões, que ele não tem como evitar porque são carregadas na sua formação e na sua história. É esse o ponto da poiesis. Então o historiador tem um quê de criação de invenção na narrativa histórica porque ele selecionará o objeto – ele selecionará os recortes necessários para o estudo daquele objeto, o que importa e o que não importa – e nisso existem inúmeros condicionamentos pessoais. Isso não invalida a conclusão histórica, não nos afasta da possibilidade de termos uma verdade histórica. Contanto que saibamos reconhecer esses condicionamentos, identificá-los e nos afastar deles na medida em que o método científico o permite. Agora, ignorar esses condicionamentos é o que levaria inevitavelmente ao fracasso da pesquisa histórica. Reconhecer o objeto e reconhecer os condicionamentos e tratá-los é uma condição de possibilidade da verdade histórica. É como se fosse quisesse utilizar uma bicicleta pra percorrer uma trajetória de Belém a Castanhal em quinze minutos – isso não é possível. Agora se você reconhece os limites do seu objeto, os limites do seu método e os seus próprios limites você pode dizer “em quinze minutos eu não chego, mas posso chegar em tanto tempo”. O objetivo é possível se você reconhecer a limitação do seu método. Se você ignorá-la completamente é inevitável o fracasso.
Isso são algumas informações e considerações de cunho epistemológico que eu procurei fazer na aula passada, entendendo a epistemologia como o estudo da verdade ou das possibilidades de uma determinada ciência. Epistemologia é o estudo dessas possibilidades de uma determinada ciência – das suas conclusões, das suas afirmações, da sua verdade. Então a verdade histórica é possível, mas sob determinadas condições, compreendendo que não há uma distância de alienação entre o sujeito que conhece e o objeto que será conhecido ou estudado.
Hoje nós partiremos para uma outra consideração. Nós vamos entender a história como a ciência do homem no tempo. Esse é o conceito que eu escolho utilizar aqui – é um conceito de Marc Bloch. Bloch define e explica em sua Apologia da História a história como ciência do homem e do tempo a partir de seus dois elementos conceituais principais: primeiro, o homem. Nada do que é humano é estranho à história. Aquilo que, entretanto, for indiferente ao homem é também indiferente à história. Como disse no princípio: o conceito define para nós não apenas um elemento de memorização – ele define o alcance, o horizonte, o limite daquela ciência. Para Bloch, a história se ocupa exclusivamente daquilo que toca ao homem. Utilizarei dois exemplos para que isso fique mais claro – exemplos da obra de Bloch.
Primeiro exemplo: um evento geológico que tenha ocorrido há milhões de anos atrás numa área desértica e isolada ainda hoje do mundo. Uma explosão de dimensões apocalípticas, um terremoto de dimensões titânicas... Por maior que tenha sido o evento, se não havia nenhuma comunidade humana, ninguém para ver, e aquilo não afetou o curso de vida de nenhuma civilização ou nação, aquilo é indiferente à história. Não quer dizer que seja indiferente para a geologia, mas é indiferente à história. Se, eventualmente, milhões de anos depois, alguma comunidade habitou aquela região e aquele solo se abriu e todo mundo caiu dentro e morreu um monte de pessoas naquele desastre e as razões deste desastre remontarem à formação daquele terreno (lá de milhões de anos atrás), aí sim aquilo terá algum tipo de repercussão histórica. Um exemplo que ele [Bloch] dá: na região de          Bruges, hoje ainda uma cidadezinha medieval do interior da Bélgica que foi congelada no tempo no seu auge comercial. Foi uma região de intensa comercialização na época do Renascimento Comercial da Idade Média por volta dos séculos XIII e XIV. Todo comércio flamenco se dava pela região de Bruges. Só que, ao longo de uma centena de anos, a sedimentação por aluvião na foz do rio foi afastando cada vez mais o porto da cidade. A cidade foi se interiorizando e porto se afastando dela a tal ponto que já não compensava comercializar naquela região – ela foi perdendo a sua utilidade histórica – e outros portos foram ganhando maior importância: Rotterdam, Amsterdam, e que depois todo também foram se arrebentando ou perdendo a sua importância maior com a descoberta da navegação atlântica. Enquanto a navegação era essencialmente um combinado entre mediterrânica e fluvial esses portos todos tinham uma importância enorme – os portos italianos, principalmente, e os portos que desaguavam em foz de rio. No momento em que um fenômeno físico-  que foi a sedimentação da foz daquele rio – foi atacando a viabilidade comercial do rio, esse fenômeno tem uma importância histórica. Se fosse só um aluvião, a mudança de terras de um lugar pro outro, isso poderia não ter absolutamente nenhum importância – quantas vezes isso acontece por semana no rio Amazonas? Enquanto isso não interfere com algum processo histórico, enquanto isso for indiferente ao homem, é indiferente à história. E diz Bloch, numa frase absolutamente forte e significativa – emblemática. Ele diz que a história é como o ogro da lenda, onde fareja carne humana, lá ele está. É a mesma coisa com a história – onde ela fareja a carne humana, lá ela estará. Ele se refere aos ogros das lendas francesas do século XVIII e XIX – monstros carnívoros. Onde está a carne humana, lá está a história. Se é indiferente ao ser humano, é indiferente também à história.
O primeiro elemento do conceito já define um horizonte – mas isso não basta, porque a antropologia também é uma ciência do homem. A sociologia também é uma ciência do homem. No que efetivamente elas se distinguem da história? Qual é o elemento distintivo da história em relação a todas essas outras abordagens importantes? A história é a ciência do homem no tempo. Enquanto o elemento tempo não é introduzido a história não se individualiza de maneira completa em relação às outras ciências. O que a distingue das outras ciências é precisamente o elemento temporal. Mas então nós estamos diante de uma outra questão: como nós podemos conceituar o tempo? Como podemos entendê-lo? Porque observem comigo um detalhe importante: uma das tarefas de toda ciência é fazer com que aquilo que entendemos cotidianamente, aquilo que nos parece absolutamente simples, aquilo que de tão simples e cotidiano para nós é até invisível se torne consciente e perceptível para nós. O exemplo maior disso é o da nossa respiração: o conjunto de músculos e de operações físicas e fisiológicas que nos permitem respirar. A respiração para nós é uma coisa tão cotidiana e tão banal, repetitiva, que nós não nos pegamos maravilhados a todo e qualquer segundo nos dizendo “estou respirando”. Nós só nos lembraremos de que respiramos quando a respiração nos faltar. Quando for mais difícil para nós, nós nos lembraremos como era bom respirar direito. Esta é mais ou menos a função das ciências – provocar uma espécie de asfixia, providenciar uma suspensão do momento, para que nós possamos perceber, de maneira consciência, aquilo de que nós somos constituídos, ou aquilo que nos cerca, elementos que ficam invisibilizados no cotidiano para todos nós. A função de toda e qualquer ciência implica também epoché, numa suspensão, como se ela nos tirasse da linha normal dos acontecimentos para nos devolver à maravilha dos acontecimentos – noção a qual nós perdemos quando os acontecimentos se tornam repetitivos para nós, quando eles se transformam em rotina.

O projeto do novo CPC: anotações

Disponibilizo resumo da palestra da Dr. Bruno Garcia Redondo proferida na Escola da AGU do RJ. A transcrição, ainda com erros de digitação, me foi enviada pelo Procurador Federal Istvan Laki, a quem agradeço.
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O NOVO CPC – TÓPICOS – PALESTRA MINISTRADA PELO PROF. BRUNO GARCIA REDONDO NA EAGU-RJ SOBRE O PROJETO DO NOVO C.P.C. QUE TEM PREVISÃO DE PROMULGAÇÃO PELO SENADO FEDERAL EM 2012 (COMISSÃO DE ILUSTRES QUE ACOMPANHA ESTE PROJETO É COMPOSTA POR FRED DIDDIER J. ALEXANDRE CAMARA, TERESA ARRUDA WAMBIER ENTRE OUTROS)

- Art1º NCPC - prevê que a lei será aplicada sempre á luz da constituição (nem precisava).
- Art.118 NCPC – Impõe o dever de efetividade sobre dos provimentos jurisdicionais.
- A execução da multa fruto de descumprimento de antecipação de tutela vai se dar antes do trânsito em julgado final, forçando o cumprimento imediato da decisão.
-Positivou-se os efeitos infringentes nos Embargos de Declaração (com contraditório antes de decidi-los).
-Antes do juiz se manifestar sobre matéria de ordem pública que podem acarretar a extinção do processo como a ilegitimidade partes reconhecida no Tribunal, abrirá vistas a outra parte, evitando a surpresa 9como num processo que tramita há dez anos e de repente vai virar poeira em 3 segundos, evita a surpresa!) .
-Continua o art.285-A, mas agora não bastará uma sentença do mesmo juiz para precipitar o julgamento e sim jurisp. de tribunal superior  ou decisão num novo instituto chamado INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS (INSTITUTO NOVO!)
-Arts.271, 272 e 476 do NCPC  trazem a necessidade de se fundamentar a decisão de urgência (nem precisaria art.93, X, CF/88) MAS AGORA DIZEM COMO DEVE SER UMA FUNDAMENTAÇÃO AFATSANDO EXPRESSAMENTE OS CONCEITOS JURÍDICOS INDETERMINADOS, OS JARGÕES E A MENÇÃO À “PRESENÇA DOS REQUISITOS LEGAIS” SUMAMENTE, TENDO QUE NEFRENTAR CADA ARGUMENTO DAQUELE QUE PEDE A TUTAL DE URGENCIA.
-O LIVRO III ACABA, SUMINDO A CUATELAR QUE VAI SE DIVIDIR AGORA EM TUTAL DE URGENCIA (SATISFATIVA E NÃO-SATISFATIVA) E TUTELA DE EVIDENCIA.
-IMPERARÁ A DISTRIBUIÇÃO DINAMICA DO ONUS PROBATÓRIO PODENDORECAIR SOBRE QUAISQUER DAS PARTES O DEVER DE PRODUZIR PROVA AINDA QUE O FATO SEJA PREJUDICIAL A ELA CONSIDERANDO SEMPRE AS CONDIÇÕES ECONOMICAS, JURIDICAS E TÉCNICAS DA PARTES (VAI POR TERRA AQUELA REGRA DE QUEM ALEGA FATO CONSTITUTIVO DEVE PROVAR, ART.333, I DO C.P.C.)
- TERESA ARRUDA EXPRESSOU QUE DEVERÁ EXSITIR NO CPC UM PRINCÍPIO DE VEDAÇÃO Á DECISÃO NÃO EQUANIMES EM CASOS IDENTICOS DENTRO DO MESMO TRIBUNAL – E QUE ESTA DEVERÁ SER UMA TONICA DAS CORTES, SOBRESTAR CASOS ANALOGOS OU SEMELHANTES PARA QUE SEJAM JULGADOS JUNTOS E DE FORMA NÃO DISSONANTE, VERDADEIRO PRINCÍPIO JURÍDICO E CRIOU O NOVO INSTITUTO DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS (IRDR) .

-NÃO FOI ACEITO O IRDR (VIDE ACIMA) PREVENTIVO POIS SERIA UM DESESTIMULO AO DEBATE DE TESES JURIDICAS E MATURAÇÃO DAS QUESTÕES.
- O IRDR VAI TRAZER TECNICAS DE INTEPRETAÇÃO DO COMMON LAW AO NOSSO DIREITO O DISTINGUISH

-JUIZ PODERÁ FLEXIBILIZAR AS FORMAS DO ATOS PROCESSUAIS COMO REDUZIR OU AUMENTAR O NÚMERO DE TESTEMUNHAS, SEGUINDO A LINHA DOS EUA E FRANÇA, BEM COMO SERÁ ACEITO O ACORDO DE PROCEDIMENTO ONDE AS PARTES PODERÃO MANEJAR O RITO DE UMA FORMA MAIS EFICAZ E CELERE MEDIANTE ACORDOS HOMOLOGADOS PELO JUIZ.
- HONORÁRIOS DE SUCMBÊNCIA CONTRA A FAZENDO PÚBLICA DEIXARÁ DE TER COMO FUNDAMENTO O ART20, §4º CPC, PASSARÁ A TER STANDARDS COMO: ATÉ 20% DE SUCUMBENCIA CONTRA AFAZENDA EM CAUSAS ATÉ 200 SALÁRIOS MÍNIMOS (S.M.), ATÉ 10% NAS CAUSAS ATÉ 1.000 S.M. ETC... AS PROPORÇÕES ESÃO SENDO DISCUTIDAS AINDA

-CRIAÇÃO DOS HONORÁRIOS DE SUCMBENCIA RECURSAIS

-FÉRIAS FORENSES ENTRE 20/12 E 20/01

- CONTAGEM DE PRAZO SOMENTE EM DIAS ÚTEIS

-INTERVENÇÃO DE TERCEIROS: SOMEM OPOSIÇÃO (QUEM QUISER ENTRA COM UM AÇÃO AUTONOMA) E A DENUNCIAÇÃO DA LIDE SE FUNDA COM A NOMEAÇÃO A AUTORIA NUMA FIGURA NOVA CHAMADA DENUNCIAÇÃO À GARANTIA

-RITO UNIFICADO, NÃO TEM MAIS SUMÁRIO E ORDINÁRIO, SERÁ UM SÓ.

-ACABA A APRESENTAÇÃO APARTADA DE IMPUGNAÇÃO AO VALOR DA CAUSA, SENDO A MESMA PARTE AGORA DA CONTESTAÇÃO BEM COM EXECEÇÃO DE INCOMPETENCIA RELATIVA
-APARTADO SÓ FICA A EXCEÇÃO DE SUSPEIÇÃO E IMPEDIMENTO DO JUIZ

-AÇÃO DECLARATÓRIA INCIDENTAL FOI EXTINTA, AGORA BASTA UMA PETIÇÃO SIMPLES REQUERENDO QUE A QUESTÃO JURÍDICA PREJUDICIAL (NÃO VAI SER QQR CAUSA DE PEDIR NÃO SÓ AQUELAS COM RELAÇÃO DE PREJUDICILIDADE) SEJA APRECIADA COM EFICÁCIA DE COISA JULGADA (DISCUSSÃO GRANDE ACERCA DO CONTRADITÓRIO E AMPLA DEFESA NESTES CASOS)

- EXTINÇÃO DO EMBARGOS INFRIGENTES E AGRAVO RETIDO (AQUI TÁ O GRANDE EMBROGLIO PARA FRED DIDDIER QUE ATÉ NO SITE DELE FAZ UM MANIFESTO ALEGANDO QUE O TRIBUNAL VAI TER QUE COMEÇAR A FAZER VISTA GROSSA PARA MJUITA COISA, BEM COM OAS APELAÇÕES FICARÃO GIGANTESCAS E SEMPRE QUERENDO ANULAR O PROCESSO NUM CICLO PERIGOSO DE DEMORA PROCESSUAL)

- SUSTENÇÃO ORAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO TAMBÉM

-UNIFORMIZAÇAO DOS PRAZOS EM 15 DIAS E EMBARGOS DE DECLARAÇÃO EM 5 DIAS;  FAZENDA PÚBLICA COM PRAZO EM DOBRO PARA TUDO(ACABOU O PRAZO EM QUDRUPLO PARA CONSTESTAR)

-PREQUESTIONAMENTE AGORA ESTÁ POSITIVADO NA MODALIDADE HOJE CONHECIDA COMO IMPLÍCITO, NÃO VAI MAIS PRECISAR INTERPOR RESP PARA PREQUESTIONAR A NÃO APLICAÇÃO DO ART.535 DO C.P.C.

-RE/RESP – O STJ AO APRECIAR O RESP E ENTENDER SER MATÉRIA DE CIUNHO CONSTITUCIONAL VAI PODER MANDAR DIREITO AO STF SEM QUE SEQUER EXISTA UM RE INTERPORSO (HOJE SE NÃO TEM O RE E A MATÉRIA É CONSTITUCIONAL, O STJ EXTINGUE)

- MULTA DO 475-J A PARTIR DA INTIMAAÇÕ DO ADVOGADO

-ADMISSÃO DA PROVA ILÍCITA MEDIANTE JUIZO DE PONDERAÇÃO: APROVEITA A PROVA E PUNE A ILICITUDE.

-DESCONSIDERÇÃO DA PRESONALIDADE JURIDICA COMO PROCEDIMENTO INCIDENTAL E COM CONTRADITÓRIO OBRIGATÓRIO

- -SAI ART.526 DO C.P.C., NÃO PRECISA MAIS PEDIR RETRATAÇÃO (DISCUTIDO)

-DEFENSORIA PUBLICA APARECE COMO PARTE EXPRESSA NO C.P.C.
- GRATUIDADE DE JUSTIÇA NOS EXATOS TERMOS DA LEI 1060/50

- DEFESA DO PARTICULAR CONTR TITULO EXECUTIVO JUDICIAL TRANSITADA EM JULGADO SERÁ ATRAVÉS DE SIMPLDE PETIÇÃO , SAIU ATÉ A EXPRESSÃO IMPUGNAÇÃO

-RESCISÓRIA O NOVO PRAZO É DE UM ANO
-FIM DO SISTEMA PRESIDENCIALISTA DE COLHEITA DE PROVA TESTEMUNHAL, O ADEVOGADO PERGUNTA DIRETO À TESTEMUNHA COMO NO NOVO PROCESSO PENAL!

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

TEORIA DA HISTÓRIA: ALGUMAS APROXIMAÇÕES

Anotações sobre a primeira aula do curso de História do Direito e do Pensamento Jurídico do CESUPA/Belém.

Aos meus alunos e em agradecimento aos monitores que elaboraram a degravação a seguir.
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Epistemologia significa investigação da verdade. É a pesquisa da verdade, o estudo das condições que permitem a uma determinada área do conhecimento afirmar que aquilo que postulou é verdadeiro. Obviamente nós estamos dentro de um espaço que implica em duas faces da mesma moeda: estudar as condições necessárias para validar a verdade de uma informação é estudar também aquilo que falseia a informação, aquilo que deturpa o entendimento, aquilo que é capaz de obstaculizar o entendimento e nos levar ao equívoco. Toda e qualquer ciência que possa se afirmar enquanto tal possui uma teoria que é essencialmente uma epistemologia sobre si própria. Ela não diz respeito só a aquilo que ela estuda. Ela diz respeito a ela própria – ela estuda a ela própria também e as suas condições de afirmação e funcionamento.
Quero dizer, a história – vamos colocar dessa forma – possui duas direções no seu estudo: uma que é a história estudando o fato histórico, o historiador estudando o fato histórico. A outra direção é a história pensando sobre si mesma enquanto teoria, enquanto ciência. Essa visão é a visão da teoria da história. O que a história estuda, como estuda, por que estuda e quais os métodos que me permitiriam validar uma determinada afirmação histórica – dizer se é verdadeira, dizer se é falsa.
A primeira questão epistemológica que nos toca em relação a isso diz respeito à pluralidade semântica do termo história. Ele não possui um sentido apenas – possui diversos sentidos. Essa pluralidade semântica do termo história tem de ser consciente para nós porque cada um deles implica numa direção diferente sobre o que a história é e o que ela pode fazer. A primeira tarefa da epistemologia dentro das ciências como um todo – não apenas as ciências naturais (as ditas “ciências duras”), mas as próprias ciências do espírito (as ciências humanas) – é a precisão conceitual. O seu primeiro dever é com a precisão conceitual. Ou seja: do que exatamente nós estamos falando? O que exatamente este termo significa? No que ele implica?
No caso das ciências do espírito esse cuidado tem que ser redobrado porque a linguagem da qual as ciências humanas se valem é muito próxima de termos que são utilizados no colóquio (no cotidiano). A palavra liberdade não é uma palavra técnica do sociólogo ou do filósofo político apenas. A palavra igualdade não povoa apenas a linguagem e o pensamento do filósofo político. Vontade, boa-fé não são termos que interessam apenas ao Direito. São formas de expressão de todas as línguas. No colóquio, na feira você ouve isso, não apenas em seminários de alta teoria. É diferente da linguagem médica, da linguagem da física ou da biologia. Nós não saímos por aí ouvindo termos dessas ciências utilizadas no colóquio normal, numa conversa usual entre as pessoas ou numa manifestação de rua. “Uma manifestação em prol dos neutrinos” – nós não ouvimos isso. Agora, que as manifestações de rua falem em liberdade, falem em representatividade e legitimidade, isso é a coisa mais comum. Mas esses termos são também termos técnicos e pra que eles tenham uma viabilidade epistemológica nós precisamos saber exatamente sobre o que se quer falar. O que cabe dentro do conceito de história e o que não cabe dentro do conceito de história. O que cabe em um determinado sentido do termo história e o que não cabe em outro. A precisão conceitual é isso.
A história como ciência. O termo alemão é Geschichte. Os alemães diferenciam os sentidos de história em dois conceitos diferentes que nós não temos aqui. O problema da pluralidade semântica é mais palatável – consegue ser diminuído – quando nós diferenciamos os sentidos para um termo diferente. Aqui [no Brasil] nós misturamos tudo em uma única palavra. A história como ciência é aquela baseada em um método científico. Ou seja: a compreensão clara de quem é o sujeito cognoscente e qual é o objeto cognoscível – aquele que conhece e aquilo que está para ser conhecido. Entre o sujeito cognoscente e o objeto cognoscível se estabelece uma relação de conhecimento. As condições dessa relação de conhecimento são entremeadas pelo método científico.
O método científico diz respeito à identificação precisa do objeto e às formas de demonstração e validação dos estudos sobre esse objeto e que precisam sempre ser declaradas previamente, precisam ser concebíveis e concebidas antes do estudo se efetuar. O método científico está dentro de um projeto de estudo. [Imaginem que] eu vá estudar a Revolução Francesa. Um aspecto específico da Revolução Francesa como, por exemplo, a mudança de linguagem política entre o século XVII e o século XVIII nas reuniões dos Estados Gerais – que foi aquilo que estudou Alexy de Tocqueville. “Certo, você vai estudar isso. Em termos metodológicos: por que estudar isso? Qual é a sua justificativa? Qual é o seu objetivo com esse estudo?”. “Eu quero demonstrar que antes da Revolução Francesa não havia um linguajar político generalizado. Nós não tínhamos a linguagem da política que nos permite hoje ler os jornais, organizar movimentos, fazer crítica... A linguagem da política era uma linguagem estrita da Corte e da alta aristocracia política. Então é isso que eu quero estudar”. Isso significa – aí vem a justificativa –: “por que você vai estudar isso?”. “Eu vou estudar porque a criação dessa linguagem política talvez tenha sido a maior contribuição da Revolução Francesa, porque mesmo quando a Revolução foi dilacerada e a República foi substituída por um Império ditatorial sob a égide de Napoleão dez anos depois de ela ter acontecido, a linguagem política ficou e até hoje nós raciocinamos os governos na base de: o Presidente da República é representante do povo. Os representantes do povo devem satisfação dos seus mandatos para que o governo seja legítimo. Nós podemos destituir os representantes porque a soberania não é deles, a soberania é do povo e é intransferível... Tudo isso é linguagem política e precisou ser criada. A Revolução acabou, mas a linguagem permaneceu. Seria essa a verdadeira revolução da Revolução Francesa e não a queda da Bastilha”. Vocês sabem quantas pessoas havia na Bastilha quando ela foi derrubada? Já ouviram falar sobre isso? Quatro. Havia quatro pessoas na Bastilha! A queda da Bastilha foi um ato simbólico. A Bastilha já tinha acabado antes dela cair –empurrou-se um morto. A revolução da Revolução não foi a queda da Bastilha. A revolução está em outro lugar. A revolução da Revolução não foi a proclamação da República porque a República também caiu algum tempo depois. Não foi a afirmação das liberdades, simplesmente, porque menos de três anos depois essas liberdades já estavam praticamente jogadas ao chão sob a égide da guilhotina e da época do terror jacobino - que se espalhou inclusive pelas Américas. O que foi o verdadeiro legado da Revolução a ponto de ela ser tão importante e necessariamente lembrada até hoje? Vou mostrar que o legado está num outro sentido...
Primeiro o objetivo, segundo a justificativa. Ótimo, já entendemos o que se está querendo dizer. Agora como fazer isso? O que se vai estudar eu já entendi (o seu objetivo), mas onde buscaremos essas informações? Buscaremos, por exemplo,  nos cadernos do Terceiro Estado (cahiers).  E por que os cadernos do Terceiro Estado? Há espaços de trinta, quarenta ou cinqüenta anos entre a reunião dos Estados Gerais franceses do século XVII até o século XVIII. O estudo desses cadernos – que são as atas e os anais dessas reuniões – permitirá-nos entender como as pessoas se expressavam e como elas se expressam é condição para o que elas podem exigir. Se eu não tenho linguagem para descrever o que eu quero – pensem comigo – eu sequer sei exatamente o que eu quero. Eu não tenho como saber exatamente o que eu quero. Como as crianças ou como os adultos numa situação profunda de angústia. Você sabe que algo o está incomodando. Você sabe que quer alguma coisa. “O que é exatamente... – me diga”. “É uma coisa, uma coisa...”, a palavra coisa que é o genérico que nada diz da nossa língua. “Por que você quer isso?”. “Porque sim”. É o genérico que nada diz. Eu não tenho sequer a condição de saber exatamente o que eu desejo. Eu só posso entendê-lo através de minha linguagem.
Uma coisa – e esse exemplo que eu estou dando não é à toa, é proposital – que deve caminhar conosco ao longo desse semestre todo (é a metodologia que eu vou utilizar aqui) é a seguinte: a linguagem não vai ser entendida aqui, [isto é] não vai ser trabalhada aqui como a nossa forma de descrever o mundo. Linguagem, na escola que eu sigo, é outra coisa. Ela é “o” mundo”. O nosso mundo é aquilo que nossa linguagem é capaz de ver. Se não há linguagem, não há nada possível para nós vivermos. A linguagem cria o mundo onde nós vivemos. A nossa forma de descrevê-lo é uma representação da própria linguagem que nós já possuímos – quanto maior a sua linguagem, maior o mundo. Quanto maior a capacidade descrição dessa linguagem, mais firme e sólida é a sua percepção. A maior parte das coisas – não todas – mas a absoluta maior parte das coisas com as quais nós trabalhamos só existem no mundo da linguagem. No caso do Direito, eu digo peremptoriamente: todo ele. Nós não observamos a justiça fisicamente – ela não tem carro, não se locomove, não habita em um local específico. A liberdade, a igualdade, a solidariedade, a proteção das gerações futuras, a dignidade da pessoa humana... onde estão essas coisas no mundo físico, no mundo natural? Elas não estão em canto nenhum. Elas existem no mundo da linguagem. Isso quer dizer que elas sejam menos reais do que alguma coisa natural? Eu duvidaria bastante dessa afirmação. Um beliscão dói fisicamente, mas uma injustiça dói muito mais que um beliscão – fisicamente também. Pode me transtornar e pode me gerar um stress físico enorme. Pode me gerar um trauma – eu posso não dormir mais por causa disso enquanto eu não resolver essa questão. Mas a injustiça e a justiça são idéias, são linguagem, tão reais quanto a cadeira, a mesa e o celular. Futuro é uma idéia. É real? Absolutamente. Ora, ou nenhum de nós estaria aqui a essa hora perseguindo alguma coisa irreal. Todos nós estamos fazendo alguma opção. Vocês estão aqui para passar cinco anos em um curso na expectativa de alguma coisa para adiante. Isso não é real? Absolutamente. Mas é físico? Não, é uma idéia. O nosso mundo é um mundo de linguagem e de idéias e ele é tão mais real quanto esta linguagem possa demonstrá-lo. A Revolução Francesa vai tomar sua forma na linguagem. Quando entre um caderno de uma reunião dos Estados Gerais em 1700 o povo se refere ao rei reclamando do preço do pão como “Meu Soberano, tenha piedade dos seus súditos e baixe o preço do pão” e cinqüenta anos depois os camponeses, a mesma classe, referem-se a um outro rei dizendo “nós temos o Poder Soberano, você deve fazer aquilo que tem que fazer que é a proteção da soberania do seu povo, [isto é] cuidar do seu povo, se não poderá ser destituído por uma revolta, e essa revolta é legítima”, quando ele se refere ao rei como representante do poder soberano e não mais como “o” Soberano, a Revolução já aconteceu. O mundo que está diante desse camponês não é o mundo que está diante do camponês de cinqüenta anos antes e a capacidade de decisão dele e as conseqüências dessa afirmação são conseqüências muito distintas daquelas que seriam possíveis cinqüenta anos antes.
Essa exemplificação - que está no livro chamado “O Antigo Regime e a Revolução” – é o exemplo que eu cito da história com consciência. Eu defino o objetivo, eu justifico o objetivo e eu estabeleço um método - eu disse onde eu iria estudar – de tal maneira que a conclusão que eu chegarei ao final desse estudo seja factível para todos nós. Se eu exponho o que eu quero fazer, como eu quero fazer e todos percebem uma inteligência e uma coerência daquele material (que aquele é o melhor material) e, ao tirar conclusões daquele material, essas conclusões são sólidas porque aquele é o material correto, aquele é o relato mais coerente e a fonte mais coerente, nós podemos dizer: “nossas conclusões são corretas, o que você está dizendo é verdadeiro. A Revolução aconteceu no plano da linguagem antes de acontecer faticamente. Ela foi concebida no plano da linguagem antes de virar ato, ação. A Revolução nasce de uma idéia”. A própria palavra Revolução vai aparecer, do ponto de vista político, pela primeira vez nesses cadernos porque até então ela, nos dicionários do século XVIII, tinha apenas um sentido: o sentido da ciência onde ela nasceu, a astronomia. A revolução é a volta completa da órbita de um planeta, simples assim. Hoje quando nós mencionamos a palavra “revolução”,  primeiro nos lembramos do sentido político dela para depois nos lembramos do sentido astronômico – a coisa se inverteu bastante. É razoável estudar dessa maneira? As conclusões a que você chega são conclusões que possam ser validadas? Se sim, então esse é um estudo científico. [Imaginem que eu vá] estudar a Revolução Francesa a partir dos relatos psicografados de Robespierre. Ainda que possa ter alguma fé nesta psicografia, isso não pode ser validado como alguma coisa científica pelo simples fato de alguém dizer que não acredita nisso, acabou-se a validade do estudo. Ninguém pode dizer “eu não acredito nos cadernos da Revolução Francesa porque os cadernos estão lá, foram secretariados, foram escritos e estão catalogados na biblioteca nacional da França. Estão lá, são evidentes e eu não posso dizer “eu não tenho fé nos cadernos”. Isso não é possível.
Como o método do laboratório. “Eu vou fazer um perfume” – é um exemplo que me agrada. Estou citando uma passagem do livro “O Perfume”, de Patrick Süskind. O personagem principal desse livro, Jean-Baptiste Grenouille, é um homem dotado de um talento extraordinário – o olfato mais apurado do que qualquer pessoa e ele particularmente não tinha cheiro. Quando ele chega pela primeira vez à casa de um perfumista famoso numa das pontes inumeráveis da Île-de-France, em Paris - onde se situavam todos os perfumistas da época -, sente e fica inebriado pelos aromas que percebe ali. Ele foi entregar simplesmente couro, pois nessa ocasião ele trabalhava num curtume, ou seja, não há nada mais fedorento do que isso – é mais fedorento do que peixe, até porque se trabalha com elementos químicos. Ele acaba entrando na casa do perfumista e este lhe disse que estava tentando, há meses sem sucesso, sintetizar o aroma de um perfume de um concorrente que fazia um bom sucesso na época. Grenouille diz ao perfumista que consegue fazer. Este, sem saber se estava diante de um piadista ou de um louco, mas convencido pela intensidade da vontade de Grenouille, permite que o faça. Em menos de cinco minutos, Grenouille faz o perfume, e aquilo tem o sentido de um milagre diante do perfumista. Ele não consegue acreditar no que estava acontecendo, mas ele sentiu o perfume e era o perfume que ele queria com uma ligeira melhoria na estabilidade. Ele não consegue entender o que aconteceu. Resultado: o Grenouille vai ficar lá – ele é aceito como aluno do perfumista – porque ele quer aprender o método. Grenouille tinha o talento. O que ele não tinha era a ciência, o método, “como fazer”. “Como é que eu anoto aquilo que eu fiz de tal maneira que outra pessoa venha e consiga fazer o mesmo?”. A ciência é isso. A ciência não é a inteligência - a ciência é o método. A inteligência e o talento ficam por conta de cada qual de nós. Ela, em si, é o método. Grenouille vai ficar lá não para que o sujeito o ensine o seu talento – ele tinha cem vezes mais do que o perfumista. Mas o que ele não tinha e o perfumista tinha? O método, a ciência, o “como fazer”. “Então, você tem essas fragrâncias e vamos começar a aprender o nome de cada uma delas”. Ele sabia o perfume de cada uma delas, mas ele não sabia dar o nome, ele não sabia como pedir aquilo. Ele tinha que ir cheirando. Ele não sabia como destilar um determinado aroma e ele tinha um objetivo na vida que era obter o perfume sublime, quer dizer, o perfume do amor. Ele só tinha que matar algumas mulheres para conseguir isso – era só esse o problema. Ele queria aprender como fazer – não como matar, mas como depois de mortas, destilar o perfume que depois de elas serem assassinadas simplesmente sumia e ele queria fazer com que aquilo permanecesse. E ele vai aprender a fazer e vai conseguir fazer. A diferença entre os dois [o perfumista e Grenouille] não é outra senão a ciência ou o pensamento.
Voltando ao exemplo do livro: se eu estudasse os mesmos livros que Tocqueville chegou eu poderia chegar às mesmas conclusões que ele. É basicamente isso. “E se eu chegasse a alguma conclusão diferente?”. Eu tenho que demonstrar onde foi que ele errou na leitura destes mesmos livros. E isso cria na comunidade acadêmica o sentido do método - não se trata da fé, não se trata de uma percepção extra-sensorial. Trata-se de um estudo objetivo, de um estudo baseado num método do qual eu possa discordar, e para eu discordar de uma conclusão eu tenho que demonstrar onde o método falhou, porque dadas as mesmas condições, na ciência o resultado tinha que ser o mesmo. Se eu misturar as mesmas poções da mesma forma que a fórmula prevê o aroma tem que ser o mesmo, não pode ser diferente. Se for diferente alguma coisa falhou no método.
Isso que é facílimo, simples de entender, foi uma das maiores revoluções do pensamento de todos os tempos. É essa idéia simples a que nós chamamos Revolução Científica do século XVII. Essa é a grande diferença na cabeça de Galileu, de Bacon, de Copérnico: dadas as mesmas circunstâncias, a verdade aparecerá – e nós não podemos discordar dela. Nós temos que concordar, a não ser que você demonstre onde foi que eu errei. Não se trata de opinião. Qual é a diferença entre a opinião e a afirmação científica? Na afirmação científica a discordância só pode vir da impugnação do método. Na opinião, não. “O melhor time do país é, claramente, o Vasco da Gama. Pra mim sempre foi”. Essa é uma opinião. E quanto a isso nós podemos discordar livremente e ninguém vai poder impor outra opinião. Agora, em relação ao método, é outra coisa. “Dadas as condições A, B e C a conclusão é essa. Se eu estou errado, me mostre, no método, onde foi que eu falhei”. A opinião é outra coisa.
A história como teoria: aqui, não é a história estudando algum objeto externo. É a história pensando a si própria enquanto epistemologia. Isso que nós estamos fazendo aqui, pensando sobre o método histórico, é teoria da história – é historik, não é geschichte. Nós não estamos estudando, neste momento, a história do Direito em Roma. Nós estamos estudando a história. Nós estamos pensando sobre os limites do método histórico. Isso é ela pensando a si – é a epistemologia propriamente dita. Essa é a teoria da história propriamente dita. É outro sentido da história. Aqui eu não tenho um método específico porque eu não estou estudando um objeto – eu estou estudando ela própria. É uma metacrítica à história. É a história estudando sobre si, vendo a si mesma. Não é a história como ciência, é uma outra semântica.
À história nós também nos referimos como um conjunto de fatos e pessoas relevantes. “Esse evento é histórico”. Esse é outro sentido da palavra história, essa é uma semântica da palavra história, que nós utilizamos comumente. Isso é corriqueiro. “Essa pessoa histórica”. “Esse discurso foi histórico”. “Essas eleições foram históricas”. “Hoje é um dia histórico”. Nós não estamos falando da história enquanto teoria, não estamos pensando epistemologicamente a história. Não estamos falando de um método e pensando na história enquanto ciência. Não é uma pesquisa que eu estou fazendo quando eu digo “isto é um dia histórico”. Nós estamos nos referindo à história, da maneira mais corriqueira e recorrente, como uma associação a fatos que nós consideramos relevantes – e, portanto, deverão ser lembrados –, ou pessoas que nós consideramos relevantes ou ações que nós consideramos relevantes e que deverão ser lembrados. Em regra, nos enganamos com relação a isso, mas é uma recorrência de uso da história que não tem nada a ver com os dois sentidos anteriores - e eu não preciso demonstrar o método que me faz levar a uma afirmação dessas. É uma percepção, é uma sensação, e eu estou dizendo simplesmente que aquilo foi memorável, que nós devemos guardar memória daquilo que aconteceu. É um instinto e não tem nada a ver com a história como ciência ou como teoria. Ou falamos da aparência [res gestas] das coisas, da cara delas, literalmente. Quando nós dizemos, muitas vezes motivados pela emoção, “esse é um momento histórico”, “hoje é um dia histórico”, em geral, nos referimos à aparência das coisas, à cara delas, à sensação que nos dá aquele momento, a relevância daquele momento e a memória que devemos guardar disso.
Muito da história que foi feita até o século XIX foi uma história baseada nisso. A história de Heródoto que todos ouviram classificar como pai da história – e eu não ratifico essa afirmação [de que ele é o pai da história]. Se, motivados pela busca incessante de paternidade da história, tivermos que achar um pai para ela, dentro da linha que eu estou seguindo, considero muito mais razoável - junto com outros historiadores que já escreveram sobre isso antes – classificar Moisés como pai da história e não Heródoto. Mas ele foi um historiador importante e que, junto de outros, marcaram a história com relatos sobre eventos que até hoje nós consideramos eventos axiais: a queda do Peloponeso, as Guerras Púnicas, a invasão da Grécia pela Pérsia, o helenismo... Essa história produzida por eles é uma história que nós concebemos com o sentido mais coloquial que a palavra tem: a história é a narração memorável, mnemônica (relativa à memórias), daqueles fatos e daquelas pessoas e personalidades importantes. Isso que é história. Em regra é o que nós associamos à história, comumente. Aquilo que não é importante não é história. A Segunda Guerra Mundial sim, porque afetou uma série de pessoas, movimentou países, provocou conflitos de relevância estratégica, política, social, econômica... Isso é memorável – nós não podemos esquecer. A ditadura brasileira, a ditadura de Stalin, os gulags, os campos de concentração, Xerxes, Dario, o discurso de Péricles... Esses grandes eventos, aqueles que nós escolhemos como eventos relevantes e memoráveis ligados a personagens memoráveis, [estes relatos] compreenderam a maior parte daquilo que hoje nós chamamos história. A maior parte da produção histórica compreende isso.
É um sentido específico de história, anterior e questionado, problematizado, por essa concepção de história como teoria. O século XX foi muito rico em problematizações desta natureza. A história não é feita apenas por aqueles que têm nomes e grandes nomes. Existe a história que corre pelos rios menos conhecidos e a história dos anônimos e estes fazem com que movimentos históricos sejam possíveis, aconteçam, e uma série de histórias que antes não eram contadas porque não se compreendem como eventos relevantes. O século XX produziu isso: a história do corpo, a história dos germes, a história da higiene, a história da saúde, a história – e aí vindo para gêneros - das mulheres, a história dos negros dos Estados Unidos. Nós estamos falando de uma série de concepções diferentes de história e não apenas de objetos diferentes de história. Não é mais de Napoleão e por que ele é inesquecível, de Stalin e como era ele era mau e como mudou a história do mundo. Ou de uma grande guerra, ou de um grande evento. Nós estamos falando da história do cotidiano. Uma coleção revolucionária neste sentido é a história da vida privada. Sob o impacto dessa formulação francesa, o Brasil também fez uma excelente coleção da história da vida privada do Brasil da Colônia até a República. Não são grandes nomes, não são grandes personagens, são as pessoas comuns do dia a dia, e como as transformações que mudam efetivamente o mundo acontecem nesse microcosmo das pequenas mudanças. É outra concepção de história. Não tem nada a ver com isso [res gestas].
Então observem que eu disse logo no início dessa conversa sobre teoria da história: a maneira como você concebe o conceito, a maneira como você entende o significado dele, define os limites daquilo que você estudará. Uma concepção dessas [res gestas] não pode estudar anônimos. Pra uma concepção dessas [res gestas], um livro que descrevesse a vida cotidiana das pessoas em Pompéia, à época da erupção do Vesúvio, partindo da análise da distribuição dos banheiros nas casas, não seria nunca história. “Isso não é história, isso é uma bobagem, um conto de mau gosto”. “Como é que eu banco isso como história? Quem são as grandes pessoas? E o que é que tem de importante se havia ou não banheira, se os quartos eram ou não divididos... Qual é a importância histórica disso?”. Numa outra perspectiva, nós vamos entender as relações de poder dentro daquela sociedade, a relação entre o homem, a mulher, os pais e seus filhos, as relações dos senhores com seus servos, a partir das disposições dos quartos, dos banheiros, daquilo que é o espaço privado e aquilo que é o público dentro daquelas famílias. É uma outra concepção de história. A maneira como nós entendemos o sentido disso não é só para consignar no dicionário. “Eu sei o que é”. Eu sei qual é o horizonte de pesquisa que isso me abre. As palavras podem reduzir o mundo ou ampliá-lo. Podem multiplicá-lo ou podem diminuí-lo, dividi-lo. Cada sentido desses [historik, geschichte, res gestas, historie] aponta para um tipo específico de história e de pesquisa. 
E a história, finalmente, como ficção narrativa (a historie) é a concepção da história fictícia, que na língua portuguesa se escrevia com a letra “e”. Nós fazíamos esta diferença entre a historinha contada – a fábula de Esopo – são “estórias”, com a letra “e”. Hoje essa diferença não se faz mais até por uma questão epistemológica também. Há sempre um elemento narrativo muito forte em todas as formas de história, sejam elas fictícias ou não. Assim como também há um elemento fortemente poiético dentro da história. Poiesis vem do grego [e significa] “criação”. O historiador é também alguém que cria. Não é alguém que inventa (inventando um documento) – isto é um falsificador. No momento em que o historiador estuda algum fato histórico, ele selecionará naquele fato histórico o que ele considera e aquilo que ele não considera relevante. Sobre o mesmo fato nós podemos ter percepções absolutamente distintas do que efetivamente ele era e não era. No momento em que ele o seleciona, o historiador cria também um fato tal como aquele fato lhe aparece. Ele não está falsificando, mas ele cria o fato tal como ele lhe parece. E pode ser visto de maneira bem distinta por outras vezes.
Cito apenas um exemplo disso – e muitas vezes isso não depende nem das pessoas, mas de um conjunto de preconceitos de um determinado tempo do fato. Alguma coisa mais próxima da nossa realidade brasileira: durante muito tempo (a maior parte da história do Brasil), foi consagrada na historiografia brasileira a interpretação de que a vinda da Corte Portuguesa para o Brasil foi uma fuga e que aquela fuga foi um ato de desespero de uma monarquia absolutamente decadente, fraca, e a imagem de Dom João VI foi estereotipada – não só pela historiografia, mas também pela literatura brasileira de reação lusitana depois da independência durante todo o século XIX. Então as imagens da literatura sobre Dom João VI põe ele como um rei fraco, covarde, burro, glutão, com um problema intestinal ridículo – até estes detalhes, nitidamente voltados para a ridicularização de uma figura que deveria impor majestade foram fortemente veiculados no imaginário brasileiro. De quinze anos para cá, pelo menos, na bibliografia sobre a vinda da Corte Portuguesa para o Brasil – leiam, por exemplo, o Best seller dessa bibliografia, 1808, de Laurentino Gomes – essa interpretação foi completamente modificada. Não é que tenha aparecido algum fato novo – os fatos eram os mesmos, mas vistos de maneira diferente. Havia Napoleão pressionando, havia a Inglaterra pressionando para que a Corte fugisse. Essa idéia já existia lá pelos idos de 1750, também com Pombal, então não é uma idéia que foi concebida naquele momento. Os fatos são os mesmos, mas foram interpretados de maneira distinta, e outros foram revalorizados. Depois que a tormenta das guerras napoleônicas passou, a monarquia portuguesa era a única que ainda tinha um rei com uma coroa na cabeça dentro do Continente – Espanha caiu, Áustria caiu, Hungria (Império austro-húngaro) caiu. As monarquias mais tradicionais todas foram caindo. Então a monarquia portuguesa é a mais fraca, a covarde, a ignorante? Ela não apenas sobreviveu como consolidou uma riqueza dentro daquilo que não era mais colônia e ele [Dom João VI] ainda conseguiu, ao sair, estabelecer diplomaticamente o casamento de seu filho com uma herdeira da monarquia restaurada dos Habsburgos, que era a mais respeitada em toda a Europa. Esses fatos não foram descobertos no século XX: eles já existiam. Aquilo que foi interpretado, por mais de cem anos, como burrice e covardia, hoje na bibliografia atual é considerado um ato de habilidade política absolutamente singular – que preservou Portugal e uma colônia enorme que depois se tornou independente. Mudou-se a interpretação, não mudaram os fatos. A questão é que o que há de elemento de ficção narrativa e que nos aproxima dessas histórias narradas e contadas é porque tanto na ficção como na história dita científica nós não escapamos de um elemento que é absolutamente incontornável – somos nós (ou aquilo que nós somos capazes de ver) que selecionamos e consideramos importante ou descartável para construir a nossa história e a nossa interpretação.
O grande elemento que nos aproxima e que faz com que a história seja uma ciência diferente de todas as demais é que o objeto da história, diferentemente da biologia ou da física, não está fora do sujeito – está no sujeito. Ele [sujeito] se envolve com o objeto. Não pode se confundir com ele, mas se envolve com o objeto. Eu estudo uma célula, ou um trovão, ou os imãs, e essas coisas são exteriores a mim, mas eu estudo a história e eu faço parte dela. Como eu me distancio deste objeto? A gota de sangue, eu pingo na lâmina e observo – eu estou aqui e a gota lá. Mas eu não tenho como fazer isso com a história. O trovão não está em mim (espero que não esteja!). Agora com a história eu não tenho como fazer isso. Aquilo que eu estudo está envolvido nos meus conceitos, nos meus preconceitos, nos meus valores... Como nós podemos produzir ciência com esse grau de proximidade ou envolvimento? Nós temos que conseguir, através do método, o máximo de visões possíveis considerando a pluralidade necessária da observação histórica.