segunda-feira, 8 de outubro de 2012

COLÓQUIO SHAKESPEARE NA FGV/SP



Para que quem não esteve nesse excelente evento, possa assistir as palestras instigantes.



Evento Completo:

Parte 1 - Abertura - http://youtu.be/WHUeHWdRX7s
Parte 2 - Arthur Marotti
Parte 3 - José Reinaldo Lopes - http://youtu.be/Ym0H0Zsfdss
Parte 4 - Mesa de Debates, O Teatro da Política - http://youtu.be/_OkKAfP8eJE
Parte 5 - Workshop Com Alunos - http://youtu.be/8EzMcwD4GuA
Parte 6 - Rebecca Lemon - http://youtu.be/bgZeM_xa1EM
Parte 7 - Ronaldo Porto Macedo Jr. - http://youtu.be/pS9Z7SiIlVw
Parte 8 - Mesa de Debates, A Política do Teatro - http://youtu.be/1gdUcjI8orw

terça-feira, 2 de outubro de 2012

O direito como texto

Resumo do livro "O direito como texto", de Gregório Robles, ed. Manole, elaborado como material de apoio da disciplina Filosofia do Direito pelo monitor Diego Vale.
_____________________________________

O DIREITO COMO TEXTO
           
Esta primeira parte é dedicada a explicar o que se deve entender por texto, ressaltando os aspectos distintivos das diversas espécies de texto existentes, até finalmente chegar ao texto jurídico na segunda parte. A terceira e última parte é dedicada às observações dirigidas ao conceito de decisão.
“Quando dizemos que o direito é texto, com esse é podemos querer dizer muitas coisas. Podemos querer dizer, em primeiro lugar, que o direito se manifesta ou aparece como texto. Também podemos querer dizer que ser texto constitui a essência do direito. E, ainda, que o direito existe como texto, e que não existe se não for assim” (Página 20).
“quando digo que o direito é texto, quero dizer que o direito aparece ou se manifesta como texto, sua essência é ser texto, e sua existência real é igual à existência real de um texto” (Página 21).
O que é o texto? Primeiramente, temos a hipótese mais evidente e intuitiva: o texto escrito, como uma carta, um livro ou uma lei. Mas a linguagem oral também é texto. Uma oração, um discurso ou a pronúncia de uma sentença também são textos porque podem ser transcritos. Poder ser verbalizado é uma característica do texto. Mas não apenas isto – um aperto de mãos, um aceno, os sinais e os símbolos também são texto na medida em que nos dizem alguma coisa. Assim, o semáforo verde me diz que eu posso seguir, mas para me dizer “prossiga”, isto é, para que eu possa entender seu significado, é preciso haver subjacente a ele uma estrutura linguística. É preciso dominar o segredo do símbolo para compreendê-lo, e para dominá-lo se faz necessário transcrevê-lo segundo as regras da língua portuguesa, por exemplo.
Também acontece assim com a arte. “Mas não se pode negar que a obra artística é texto e que também é necessário dominar o segredo de seus símbolos para compreendê-la, ou pelo menos (porque nem sempre estamos seguros disso) para experimentar subjetivamente como mensagem o que nela se representa. A obra artística é símbolo decifrável como mensagem estética à humanidade. É tanto mais universal quanto mais chega ao próprio humano, quanto mais se aprofunda na universalidade a partir do objeto concreto que representa” (Página 22). Galilei afirmava que a própria natureza é um grande livro escrito em linguagem matemática. Dessa maneira, o mundo natural se transforma também em texto na medida em que o compreendemos. A física também é uma interpretação humana da realidade que nos cerca.
“Obra é aquilo que realiza um sujeito capaz de realizar ações. Portanto, uma filosofia da obra nos conduz diretamente a uma filosofia da ação” (Página 23).
            Uma obra é um universo fechado, um todo dotado de sentido próprio. Os múltiplos elementos da obra, isto é, sua diversidade, atuam como partes integrantes, integrando-se uns aos outros em uma totalidade de sentido. A obra, seja ou não literária, após criada, adquire um sentido independente de seu criador. Neste sentido, Dom Quixote tem uma vida própria em relação a Cervantes. Isto significa que ela vive como uma totalidade dotada de sentido que tem uma história própria, não se confundindo com a biografia do autor. “A história de uma obra é, essencialmente, a história das interpretações que o meio humano em que vive lhe vai atribuindo ao longo do tempo” (Página 23). Este é o conceito de história efeitual presente na obra de Gadamer. Para entender uma obra nos dias de hoje, não basta lê-la diretamente, entrando em contato com a sua literalidade. É preciso também conhecer e assimilar a história das interpretações produzidas desde sua publicação até os nossos dias, porque ela possui uma existência histórica. “A existência histórica da obra, sua história efeitual, é composta de vários elementos, mas entre eles se destaca a exegese dos críticos literários” (Página 24). É requisito para a compreensão correta da obra penetrar em sua história crítica.
            O texto ou obra literária se diferencia da obra histórica na medida em que é característica da primeira a verossimilhança, enquanto que a razão de ser do texto histórico é contar a verdade. Uma novela não narra necessariamente algo que aconteceu, mas sim algo que tenha possibilidade de ocorrer, e desse modo ela estabelece certa relação com a verdade, se comparada com o conto, por exemplo, que contém elementos fantasiosos (animais que falam, montanhas que se movem, criaturas inexistentes). A relação entre a novela e a verdade é, portanto, de possibilidade. Por outro lado, o texto histórico falha caso não consiga relatar a verdade, isto é, se não tiver qualquer adequação àquilo que realmente aconteceu. O interessante é saber que não há outra maneira de demonstrar a inadequação de um texto histórico a não ser escrevendo uma nova história. É da natureza do conhecimento histórico exigir a interpretação, uma vez que os documentos ou testemunhos não falam por si mesmos – Marc Bloch diria que eles só falam quando interrogados pelo historiador. Quer dizer que os fatos históricos estão aí, mas as ligações que se estabelecem entre eles e o sentido subjacente a eles só podem ser obtidos com uma interpretação. Isto significa que:
“Toda história contém, ainda que escondida, uma filosofia da história, uma maneira de ver o decurso conjunto dos acontecimentos e personagens, estruturas sociais e mentalidades ideológicas, ao longo do tempo. No fundo, todo trabalho histórico (e, portanto, todo texto histórico) supõe, por mais inconsciente que seja, uma concepção da história universal” (Página 26).

            Entender um pouco da Bíblia e em seguida tratar de suas relações, diferenças e semelhanças com relação a um texto jurídico pode ser de ajuda para compreender um conceito do autor chamado de função ou prioridade pragmática. Para saber que tipo de texto é a Bíblia, é preciso adotar um de dois possíveis pontos de vista: um externo e um interno. O externo é o do não crente, do historiador, do observador literário, e segundo este ponto de vista, a Bíblia é, ao mesmo tempo, um texto literário, pois está escrito em estilos literários variados, como a narração épica e a manifestação lírica, um texto histórico, pois relata acontecimentos do passado, isto é, a história de um povo, e um texto profético, na medida em que se projeta a todo momento para o futuro. Por outro lado:
“A partir do ponto de vista interno, para o fiel ou crente, a Bíblia é a palavra de Deus. Não é, preponderantemente, nem literatura, nem história, nem profecia pura e simples. É a revelação de Deus aos homens com um duplo objetivo: que estes conheçam a verdade e que direcionem suas vidas de acordo com os mandamentos e conselhos registrados no Livro. É da essência interna das Sagradas Escrituras ser mensagem dirigida por Deus aos homens através de determinados intermediário humanos. Os aspectos externos de gênero literário, caracteres históricosa etc., permanecem num segundo plano em relação ao centro nuclear, que é a mensagem” (Página 26).
           
Ao contrário do que se pode ver do ponto de vista externo, para o crente a comunicação da revelação divina é revestida de um caráter prático. Para o crente, o mais importante da Bíblia não é o seu estilo literário, nem a verdade científica que o texto revelaria, mas sim o comprometimento oriundo de uma atitude de fé para com a mensagem e a revelação divinas. Outro aspecto interessante do texto bíblico é que, muito embora ele constitua uma obra fechada, ainda assim o livro possui uma história efeitual, isto é, uma tradição de interpretações que se identifica com a história da Igreja e das comunidades crentes.

A FUNÇÃO PRAGMÁTICA DO TEXTO JURÍDICO

Quanto ao texto jurídico:
“Ao contrário da novela e da história, o texto jurídico não é um texto narrativo, mas prescritivo. Neste aspecto, é parcialmente parecido com o texto bíblico, pois neste também se manifesta a verdade. Mediante o texto jurídico, o grupo humano (imaginando-se um Estado modelo) se constitui e se revela, comunicando-se com os membros para exigir-lhes organização e condutas” (Página 28).
           
            Dizer que o texto jurídico é prescritivo é afirmar que ele possui uma função pragmática específica cujo sentido é dirigir, orientar ou regular as ações humanas. Assim:
“A função prescritiva é relativa à ação, que assim adquire valor de categoria central na teoria do direito. Ao dizer que o texto jurídico é prescritivo, afirmamos exatamente que todo ele adquire seu sentido na relação com a ação. Portanto, o texto jurídico é um texto prático, e não teórico. É por isto, por exemplo, que o texto jurídico não contém definições, que por sua própria natureza pertencem à função teórica da linguagem” (Página 30).

Outra implicação é que o “próprio texto cria as ações que podem ser qualificadas como jurídicas, e o fato de regular a ação não significa que a ação jurídica existia antes do texto, mas sim que é o texto que a constitui” (Página 29). O exemplo é do homicídio: sem dúvidas que matar alguém é uma ação que existe independentemente do texto jurídico, mas a ação jurídica do homicídio só existe em razão da preexistência do texto jurídico. A visão do senso comum sendo a qual a ação de matar alguém preexistiria à regulação normativa não se adéqua à característica essencial do direito que é ser um âmbito ôntico-prático de caráter constitutivo-regulador (Página 36). Não existe homicídio antes da norma, pois o direito não se limita a regular ações, mas ele também, com prioridade, constitui ações. O carrasco numa execução, um soldado em guerra, ou a polícia diante de uma ameaça grave também cometem a ação física de matar alguém, mas nem por isso consideramos que eles cometeram o crime de homicídio. Como é que isto acontece?
“A solução deste aparente paradoxo está em que a ação não é apenas um movimento físico ou psíquico-físico, não é um acontecer meramente factual, mas um significado, um sentido. A ação é o sentido que um determinado movimento psíquico-físico tem” (Página 36).

            É por isso que o mesmo movimento físico (“matar alguém”) pode ter vários significados. A ação nunca é algo por si mesmo evidente, que precisamos apenas contemplar ou passivamente observar para sabermos o que ela é. Toda ação adquire seu sentido de um contexto situacional e de um discurso comunicacional nos quais está inserido. Em última análise, toda ação é passível de ser transformada em texto, e por isso é preciso interpretar o movimento psíquico-físico para sabermos do que se trata – se é homicídio, se é legítima defesa, se é estrito cumprimento de dever legal, etc. Segue a descrição detalhada do autor:
”A definição concreta de cada hipótese será produto de um processo de leitura ou de interpretação da ação meramente naturalista a partir do discurso de referência, que é do texto jurídico total. Esta operação é denominada subsunção, na terminologia jurídica, pois sua essência consiste exatamente em subsumir ou encaixar uma ação concreta na ação contemplada no texto. Para subsumir é preciso interpretar, pela perspectiva do discurso do texto em que se contempla genericamente a ação, os movimentos que ocorreram na realidade; e é nessa ida e volta do olhar entre a ação realizada de fato e a ação contemplada no texto que consiste o mecanismo intelectual que configura a subsunção. Não obstante, para realizar essa operação é imprescindível que a ação concreta seja também tratada como um texto, ou seja, como um conjunto de movimentos dotado de significado; e, como todo texto, deve ser suscetível de interpretação e de compreensão. Ocorre apenas que essa interpretação da ação concreta não se verifica de maneira isolada e independente, mas a partir do texto jurídico já constituído, à luz do qual se pretende comprovar se a ação concreta se ajusta ou não à ação regulada” (Página 38).

            A função pragmática da prescrição permeia todo o conjunto do texto jurídico, de modo a não haver elementos estranhos a essa função. Diz respeito à maneira como se lê o texto. É a isto que se denomina princípio da prioridade pragmática.
“Assim como na novela tudo é narrativo, ainda que nela apareçam elementos que, isoladamente, não o seriam (por exemplo, uma ordem, um conselho), e assim como na Sagrada Escritura tudo é mensagem revelada (e é neste contexto de mensagem que se deve entender cada um de seus elementos, e não, por exemplo, como teorias científicas sobre o universo), no texto jurídico tudo é prescritivo ou regulador. Isso porque a natureza dos elementos é determinada pela natureza do conjunto. Por tal motivo, o direito não pode ser considerado como uma soma de elementos, chamados de normas ou de qualquer outra maneira (instruções etc.); em realidade, o todo, aquilo que habitualmente se denomina ordenamento jurídico, é o conceito prioritário e prévio no qual os elementos particulares adquirem sentido. Por isso, ainda que o legislador acredite estar narrando, fabulando, teorizando, definindo etc., o que efetivamente está fazendo é prescrever. Uma definição num texto legal não é uma definição, mas uma prescrição que determina, por exemplo, a maneira de compreender uma palavra no âmbito dos significados do ordenamento. Perder de vista esta ideia significa esquecer o caráter de totalidade de significado que é inerente ao ordenamento jurídico” (Páginas 29-30).
            O primeiro exemplo que o autor usa para esta explicação é o de Dom Quixote. Mesmo que apareça na narração uma ordem dada por um personagem a outro, ela nunca terá função prescritiva, na medida em que a ordem só pode ser plenamente compreendida quando nos damos conta de que ela é uma narração de uma ordem dada de um personagem fictício a outro e não uma ordem tão simplesmente. O segundo exemplo é o de um artigo do Código Civil que diz o que é a compra e venda.
O verbo é que aparece no artigo do código (“a compra e venda é...”) está dotado de uma força pragmática muito diferente do é da frase isoladamente considerada ou que aparece num contexto narrativo. Numa novela não encontramos ordens, mas narrações fictícias de ordens. No texto bíblico não encontramos teorias, mas mensagens para ordenar a vida. Num texto jurídico não encontramos definições ou narrações, mas apenas prescrições de definições ou narrações. O princípio de prioridade pragmática é, portanto, um princípio ontológico do texto” (Página 32).

Assim, se não se compreende que Dom Quixote é uma novela de cavalarias, e não um texto histórico, pode-se passar pelo engano de acreditar que a ordem de um dos personagens dada a outro é uma ordem que historicamente ocorreu. Da mesma maneira, se não se compreende que o artigo do código civil não quer apenas narrar o que seja a compra e venda e sim prescrever um sentido a ser obedecido por seus intérpretes, não se compreende nada. Em outras palavras, é preciso saber qual a função pragmática do texto para em seguida compreender seu sentido.


DECISÃO

O mundo jurídico também possui um ato criador próprio, um fiat jus, que é a constituição. Todo ordenamento jurídico é um texto escrito ou pelo menos passível de transcrição, como acontece com o direito consuetudinário. O texto jurídico não é uma obra, isto é, não é uma totalidade de sentido fechada em si mesma, mas sim um texto aberto. A abertura significa que o texto está sempre sendo criado e recriado com o tempo. Com isso ele nunca está definitivamente terminado e sim permanentemente em transformação.
“Ao contrário de outros tipos de texto que mencionamos, o texto jurídico é sempre um texto aberto, que vai sendo paulatinamente criado e recriado mediante decisões concretas. Cada decisão produz um novo texto, que se incorpora ao já existente, renovando dia a dia o ordenamento jurídico” (Página 32).

Por isso a decisão é uma das características essenciais do texto jurídico. O núcleo fundamental do texto jurídico é, portanto, uma teoria da decisão. Desse modo, é preciso entender melhor o que é uma decisão. Toda decisão é uma ação, isto é, a ação de decidir, e por isto toda teoria da decisão caminha de mãos dadas com uma teoria da ação[1]. A decisão deveria ocupar um lugar de destaque na teoria direito, uma vez que o direito só adquire sentido enquanto texto que dirige as ações humanas. É uma negligência da teoria do direito não dar o tratamento conceitual necessário à decisão como origem dos elementos constituintes do direito, pois todas as normas têm origem em atos de fala especiais que são as decisões. A decisão constituinte é um ato de fala que cria um novo ordenamento, do qual a constituição é o resultado, da mesma maneira que, na Bíblia, o universo é resultado do fiat divino. A constituição prescreve as condições necessárias para a produção de novas decisões e, por conseguinte, para a inserção de novos textos dentro da totalidade textual que é o ordenamento jurídico.
Para entender o sentido da ação no texto jurídico, o autor explica as relações, particularidades e semelhanças entre o direito, o teatro e o jogo, de maneira similar à que procedeu na comparação entre os textos jurídicos, bíblico, históricos e literários. Pois bem: de que maneira o teatro, o jogo e o direito se relacionam com a ação?
            A obra teatral é um texto fechado que se limita a expor a ação. Cada ator “veste” uma máscara (que no antigo teatro grego era denominada de persona), isto é, representa um papel, interpretando um personagem. Por ser uma arte interpretativa, o texto teatral se atualiza a cada apresentação da peça – a ação que está no texto pode ter diversas representações no palco. Por fim, a obra teatral provoca a suspensão da vida real, isto é, abre um parênteses em relação a ela. Quer dizer que nada do que acontece ali no palco está acontecendo de verdade, muito embora seja perfeitamente possível de acontecer (isto é, possa ser imaginado como real), e os espectadores todos devem saber disto, sob pena de não compreender o espetáculo.
            O jogo, por sua vez, é também um texto fechado, mesmo que possa haver jogos abertos, isto é, jogos cujas regras ou possibilidades de jogada são criadas pelos jogadores no decorrer da partida. No jogo, simplesmente se joga, não havendo representação ou colocação da ação. Não se pode conceber a ação de jogar sem uma referência à anterioridade das regras do jogo e, neste sentido, o jogo é o conjunto de suas próprias regras.
“Assim, por mais interessantes que possam ser as explicações a respeito do mundo do jogo, nunca poderemos transmitir a nosso interlocutor aquilo que o jogo é através de um simples relato sobre esse conjunto de relações externas, pois o que o jogo é se limita ao conjunto de suas regras” (Página 42).
            As regras são necessariamente pré-existentes à ação de jogar e, por isso, o texto do jogo é chamado de constitutivo-regulador, uma vez que não se limita apenas a regular as possibilidades do jogo, mas as cria ou constitui previamente. Tal qual o teatro, o jogo também se propõe a um rompimento da vida real e daí vem a etimologia da palavra diversão, que se origina de diverso e significa uma fuga da vida cotidiana, diária, rotineira... Mas o direito faz parte da vida de cada um de nós e não possui a capacidade nem o objetivo de nos distrair de nós mesmos.
“É por isso que o direito não é um jogo: o direito não supõe a ruptura com a vida real, pois é vida social real. Nossa vida pessoal está imersa em nossa vida social, sendo artificiosa a tentativa de separá-las (como fez o existencialismo, qualificando a primeira de autêntica e a segunda de inautêntica). A vida humana é biografia, e na biografia acontecem momentos de intimidade e momentos de socialização, numa unidade indivisível” (Página 42).
           
Por mais que direito e jogo se aproximem na medida em que são ambos textos constitutivo-reguladores, isto é, os dois põem a ação e não apenas a expõem, como faz o teatro, ainda assim o direito não é um jogo. Da mesma maneira que acontece com o jogo, não existe para o direito ação que não tenha sido previamente determinada por alguma norma. Pôr ou colocar a ação significa, portanto, criá-la mediante uma norma (Página 43). A ação existe desde que contemplada no texto, independentemente de ela acontecer ou não na vida real. A realização da ação é um a posteriori em relação ao texto jurídico.
            Enfim, uma observação muito importante, que vai de encontro aos modelos mais formalistas de teoria do direito:
“Não é da essência do direito estar vigente, porque, por exemplo, o direito romano não está vigente hoje, mas é direito. O ser do direito é ser texto, e não estar vigente ou implantado na realidade social, que é uma qualidade a posteriori e, por isso, eventual” (Página 44).


[1] Página 35. Aqui se estabelece visivelmente a ligação com a obra de Ricoeur.

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Preconceito e tradição em Hans Gadamer

Texto de resumo de leitura disciplina Filosofia do Direito, neste 2º semestre de 2012, elaborado pelo monitor Diego Vale, a quem agradeço, como material de apoio em sala.
_____________________________



Em um dos capítulos de Verdade e método, Gadamer se propõe a uma reabilitação de três conceitos fortemente fulminados pela filosofia moderna, mais especificamente por aquele movimento conhecido como Aufklärung[1] (Iluminismo, Esclarecimento): os conceitos de preconceito, autoridade e tradição.


            PRECONCEITO

“Será verdade que achar-se imerso em tradições significa em primeiro plano estar submetido a preconceitos e limitado em sua própria liberdade? O certo não será, antes, que toda existência humana, mesmo a mais livre, está limitada e condicionada de muitas maneiras? E se isso for correto então a ideia de uma razão absoluta não representa nenhuma possibilidade para a humanidade histórica. Para nós a razão somente existe como real e histórica, isto significa simplesmente: a razão não é dona de si mesma, pois está sempre referida ao dado no qual exerce sua ação” (Página 367).


            A história do conceito de preconceito mostra que foi somente a partir da Aufklärung que a palavra assumiu um sentido negativo. O significado originário de preconceito é um juízo que antecede o exame definitivo de todos os elementos determinantes da coisa em questão. Na jurisprudência, significa uma decisão provisória, tomada antes da sentença definitiva. Essa é a origem do termo praejudicium do latim e do préjudice do francês, pois uma decisão tomada antecipadamente acarreta necessariamente em prejuízo, dano ou desvantagem a uma das partes. Mas a negatividade do prejuízo é apenas secundária ante a positividade da validez da pré-decisão.
            Ao contrário do uso que a Aufklärung faz da palavra, preconceito não é necessariamente um falso juízo, uma vez que ele pode se revelar tanto verdadeiro quanto falso, havendo também, ao lado dos falsos, preconceitos legítimos. Préjugés légitimes são aqueles que, ao final do exame, mostram-se válidos. A ciência moderna segue o modelo da Auklärung e, acompanhando o lema da dúvida e do método cartesianos, confere ao preconceito o sentido estrito de juízo não fundamentado. Segundo o pensamento cartesiano, de ampla influencia no Esclarecimento, apenas um uso disciplinado e rigoroso da razão pode nos livrar do erro. A consequência disso é a despotenciação da tradição.
            Mas a superação de todo preconceito, a tese global do Esclarecimento, revela-se ela mesma como um preconceito que deve ser afastado de modo a liberar o caminho para uma adequada compreensão da finitude e historicidade humanas. Para fazer jus a este modo de ser finito e histórico do homem, será preciso ir de encontro à filosofia da Aufklärung e revitalizar o conceito de preconceito e reconhecer que existem também preconceitos legítimos.

 “Na realidade, não é a história que pertence a nós mas nós é que a ela pertencemos. Muito antes de que nós compreendamos a nós mesmos na reflexão, já estamos nos compreendendo de uma maneira auto-evidente na família, na sociedade e no Estado em que vivemos. A lente da subjetividade é um espelho deformante. A auto-reflexão do indivíduo não é mais que uma centelha na corrente cerrada da vida histórica. Por isso os preconceitos de um indivíduo são, muito mais que seus juízos, a realidade histórica de seu ser” (Páginas 367-68).

AUTORIDADE

Gadamer começa tratando de uma distinção muito cara à Aufklärung entre preconceitos por precipitação e de autoridade. Conforme esta divisão, ambos os preconceitos têm como origem a não utilização da razão, seja por não ter seguido rigorosamente o método, como no primeiro caso, seja porque nos privamos a nós mesmos do uso de nossa própria razão e apelamos à razão de outrem. Existe aí, portanto, uma oposição excludente entre razão e autoridade. Isto significa que, para o Iluminismo, não pode haver qualquer preconceito ou autoridade que contenham qualquer verdade e, por conseguinte, o uso metódico da razão é a única maneira de alcançá-la. Ao fazer isto, no entanto, o Iluminismo ignora algo que sempre esteve contido no conceito de autoridade – que ela também pode ser uma fonte de verdade. Com isso, o Iluminismo não apenas difamou todas as autoridades, como também deformou consideravelmente o próprio conceito de autoridade, que assumiu a partir de então o sentido oposto de razão e de liberdade, qual seja, o de obediência cega.
Mas nem toda autoridade é necessariamente autoritária e, pelo contrário, a genuína autoridade não se comporta autoritariamente. A autoridade vem primeiramente de um ato de atribuição e, em seguida, do ato consciente de reconhecimento da superioridade ou precedência do juízo e visão do outro sobre o nosso. Dessa maneira, a autoridade deve ser conquistada. Não se trata, portanto, de abdicação ou renúncia da razão, mas ao contrário, a pressupõe – a razão que reconhece seus próprios limites e vê no outro um pensamento mais acertado. Assim, o verdadeiro fundamento da autoridade é um ato de liberdade e de conhecimento que a concede a alguém reconhecidamente superior (alguém que sabe melhor), e não a obediência. Sem o reconhecimento de que o que a autoridade diz é ao menos em princípio razoável e não uma arbitrariedade inaceitável tarefas como a educação seriam impossíveis. Nós não obedecemos e acatamos os preconceitos das autoridades[2] apenas porque quem fala encontra-se em uma posição de superioridade, mas também porque há uma razão ou verdade naquilo que dizem. É por isso que uma correta compreensão do conceito de preconceito deve se desviar do caminho adotado pela Aufklärung.

TRADIÇÃO

Existe ainda uma outra forma de autoridade que é fonte de preconceitos: a tradição. Como já mencionado, toda educação repousa sobre alguma forma de autoridade, mais especificamente a forma anônima de autoridade que possuem as heranças e tradições históricas que nos são deixadas. Tudo aquilo que nos é transmitido tem influência sobre nosso comportamento, e não apenas aquelas coisas que possuem fundamentos auto-evidentes, e quanto mais pensarmos que, nos tornando senhores de nós mesmos com o alcance da maioridade, livramos-nos dessas influências, mais nos surpreendemos com sua ainda constante presença.
Essa correção da Aufklärung, que devolve à tradição seu direito e reconhece a sua determinação em nossas instituições e comportamentos, é atribuída ao romantismo alemão. Mas o romantismo alemão, tal qual a Aufklärung, ainda apresenta uma deformidade em sua compreensão da tradição: a tradição continua sendo o contrário da liberdade racional, já que ela não necessita de fundamentos racionais para se legitimar, uma vez que está aí desde sempre.
É preciso, com Gadamer, compreender que a relação entre tradição e razão não é autoexcludente (se uma se faz presente, a outra precisa necessariamente estar ausente). Estas ideias podem conviver ao mesmo tempo, e isto não foi algo que o romantismo, o historicismo e a Aufklärung conseguiram reconhecer.
O romantismo alemão, tal qual o historicismo, apesar de investirem contra a derrubada das tradições proposta pelo Iluminismo, ainda assim compartilham de um mesmo preconceito ingênuo – o de que na tradição não haveria nada de racional. Para o romantismo, a pertença a um espaço de sentido compartilhado nos tiraria toda a liberdade, o que é uma premissa também do Iluminismo, a despeito dos dois movimentos apontarem em direções contrárias.
O retorno romântico a um modo de vida autêntico, isto é, a busca incessante das raízes da identidade folclórica e cultural de um povo, muito embora se oponha a um ideal de homem universal, observa o mesmo esquema[3] do preconceito do Iluminismo – o de que nestas tradições não haja nada de justificável, racionalizável, mas apenas origens históricas. Que o homem nunca escolhe suas tradições e que, portanto, ele estaria sempre determinado por elas.
“O romantismo entende a tradição como o contrário da liberdade racional e vê nela um dado histórico ao modo da natureza. E, quer se queira combatê-la revolucionariamente ou se queira conservá-la, a tradição se mostra em ambos os casos como o contrário abstrato da autodeterminação livre, já que sua validez não necessita fundamentos racionais, pois nos determina de modo espontâneo” (Página 373).

Só que isso não é verdade e não faz jus à consciência histórica, pois a tradição é também um espaço de liberdade. Talvez mesmo a única condição da liberdade humana... É preciso, portanto, para uma melhor compreensão da historicidade e da finitude do homem, abolir a oposição entre tradição e ciência e admitir que todo o conhecimento humano, até mesmo o científico, acomoda-se sobre um plano de fundo compartilhado e sempre anterior a nós próprios. Admitir, portanto, que jamais somos seres inaugurais. Que o nosso conhecimento não foi criado por nós mesmos, e sim que sempre damos continuidade[4] ao trabalho de homens que viveram antes de nós e que, quando a nossa permanência nesse mundo acabar, outros homens que virão depois de nós também continuarão. A tradição é, assim:

“um momento da liberdade e da própria história. Também a tradição mais autêntica e a tradição melhor estabelecida não se realizam naturalmente em virtude da capacidade de inércia que permite ao que está aí de persistir, mas necessita ser afirmada, assumida e cultivada. A tradição é essencialmente conservação e como tal sempre está atuante nas mudanças históricas. Mas a conservação é um ato da razão, e se caracteriza por não atrair a atenção sobre si. Essa é a razão por que as inovações, os planejamentos aparecem como as únicas ações e realizações da razão. Mas isso não passa de aparência. Inclusive quando a vida sofre suas transformações mais tumultuadas, como em tempos revolucionários, em meio à suposta mudança de todas as coisas, do antigo conserva-se muito mais do que se poderia crer, integrando-se com o novo uma nova forma de validez. Em todo caso, a conservação representa uma conduta tão livre como a destruição e a inovação. Tanto a crítica da Aufklärung à tradição, quanto a sua reabilitação romântica, ficam muito aquém de seu verdadeiro ser histórico” (Páginas 373-74).

É necessário, portanto, um esforço consciente para decidir o que se deve transmitir, uma vez que nem tudo é e nem deve ser transmitido[5]. Queremos transmitir àqueles que prezamos apenas coisas boas. Para aqueles que nos sucederão, de preferência as melhores. Este processo de seleção está longe de ser uma atitude de passividade, em oposição ao movimento dinâmico das pretensões revolucionárias. A tradição também é um movimento dinâmico, pois precisa se reafirmar a todo momento se tem em vista a sua conservação. Ela também é dinâmica em outro sentido: em meio a seu esforço de reinvenção, ela não permanece sempre a mesma, mas precisa, por vezes, incorporar mudanças significativas. Este movimento não está muito distante do âmbito jurídico. É a jurisprudência também um fenômeno profundamente tradicional[6], haja vista que mesmo as mudanças jurisprudenciais precisam levar em conta as decisões anteriores (os precedentes) de um determinado tribunal para acontecer.
Após a reafirmação do conceito de tradição, cabe a análise de alguns trechos posteriores da obra acerca de seu conceito:
“A tradição de linguagem é tradição no sentido autêntico da palavra, ou seja, aqui não nos defrontamos simplesmente com um resíduo que se deve investigar e interpretar enquanto vestígio do passado. O que chegou a nós pelo caminho da tradição de linguagem não é o que restou, mas é transmitido, isto é, nos é dito – seja na forma de tradição oral imediata, onde vivem o mito, a lenda, os usos e costumes, seja na forma da tradição escrita, cujos signos de certo modo destinam-se diretamente a todo e qualquer leitor que esteja em condições de os ler” (Página 504).
“Na forma da escrita todo o transmitido está simultaneamente presente para qualquer atualidade. Nela se dá uma coexistência de passado e presente única em seu gênero, na medida em que a consciência presente tem a possibilidade de um acesso livre a tudo quanto tenha sido transmitido por escrito. A consciência que compreende, libertada de sua dependência da transmissão oral, que traz ao presente as notícias do passado, porém voltada imediatamente para a tradição literária, ganha uma possibilidade autêntica de avançar os limites e ampliar seu horizonte, enriquecendo assim seu próprio mundo com toda uma nova dimensão de profundidade. A apropriação da tradição literária supera inclusive a experiência vinculada com a aventura das viagens e da imersão em estranhos mundos de linguagem. O leitor que se aprofunda numa língua e literatura estrangeiras mantém, a todo momento, a liberdade de voltar de novo a si mesmo, e assim está ao mesmo tempo aqui e acolá” (Página 505).
           
A tradição não é apenas algo que encontramos como uma relíquia do passado e que possamos trancafiar num museu para exposição de velharias. O “sentido autêntico” da palavra é o de transmissão, e por isso o que ela nos diz se refere a nós também e não são apenas um registro do que se disse numa determinada época a algum personagem histórico que não pode ser eu. É por isso que a leitura de um livro antigo, quando lido com a devida atenção e dedicação, a despeito da estranheza que alguns aspectos[7] nos proporcionam, é capaz de nos tocar profundamente[8]. Este livro certamente não foi escrito para ser lido por nós, mas a mensagem que ele carrega nos atinge diretamente. O efeito que ele provoca é, por muitas vezes, muito forte. Não há dúvidas, com isso, de que a tradição tem sempre algo a dizer sobre nós mesmos, e não apenas sobre algo que já passou e não pertence mais ao nosso tempo. Não é acidental, mas essencial o fato de ela chegar até nós – esse é o sentido autêntico da palavra. A escrita também é essencial e não acidental ao fenômeno da tradição, porque para além da simples persistência de resíduos de um tempo passado, a tradição é pura vontade de sobrevivência, de permanência. Desse modo:
“A tradição escrita não é apenas uma parte de um mundo passado, mas já sempre se elevou acima deste, na esfera do sentido que ele enuncia. Trata-se da idealidade da palavra, que todo elemento de linguagem eleva acima da definição finita e efêmera, própria aos restos de existências passadas. O portador da tradição não é este manuscrito como uma parte do passado mas a continuidade da memória. Através dela a tradição se converte numa parte do próprio mundo, e assim o que ela nos comunica pode chegar imediatamente à linguagem. Onde uma tradição escrita chega a nós, não só conhecemos algo individual mas se faz presente em pessoa uma humanidade passada em sua relação universal” (Página 505).
           


[1] Existe também uma Auklärung antiga, que equivale ao movimento que comumente conhecemos como passagem do mythos ao logos, mas as críticas de Gadamer se dirigem frontalmente a sua vertente moderna.
[2] O exemplo é corriqueiro: quando crianças, não obedecemos as ordens de nossos pais apenas porque “papai (ou mamãe) mandou”, mas quando eles nos dizem para não tocarmos no fogo ou na tomada, não precisamos ter tocado ou visto alguém tocar para saber que a ordem que eles dão é razoável e possui o sentido de querer o nosso bem.
[3] Aqui, Gadamer denomina este modelo exatamente de passagem do mythos ao logos. Só que, enquanto o Iluminismo aponta para a direção do logos, a libertação do homem enquanto ser dotado de razão, o romantismo e o historicismo voltam-se para uma espécie de “regressão” ao mythos.
[4] Muitas vezes com descontinuidades e rupturas, é verdade, mas sempre tomando como ponto de partida algo que já estava ali antes de nós.
[5] A formulação “deve ser transmitido” revela também uma forte dimensão ética do transmitir.
[6] Neste sentido hermenêutico de tradição. Não se quer dizer, com isso, que a jurisprudência seja criada, transmitida e modificada oralmente.
[7] Sejam linguísticos, históricos, ou de qualquer natureza, como, por exemplo, a grafia ou o próprio significado das palavras e narração de algum costume ou regra jurídica extintos de um povo.
[8] Quando lemos autores imortais, como Kafka e Dostoiévski, para citar apenas dois. Poder-se-ia alegar aqui que a distância temporal que nos separa destes escritores não é tão grande, então cito mais alguns: Sófocles, Ésquilo, Platão e Aristóteles.

quinta-feira, 7 de junho de 2012

O Brasão da Cidade


Franz Kafka

No início tudo estava numa ordem razoável na construção da Torre de Babel; talvez a ordem fosse até excessiva, pensava-se demais em sinalizações, intérpretes, alojamentos de trabalhadores e vias de comunicação, como se à frente houvesse séculos de livres possibilidades de trabalho. A opinião reinante na época chegava ao ponto de que não se podia trabalhar com lentidão suficiente, ela não precisava ser muito enfatizada para que se recuasse assustado ante o pensamento de assentar os alicerces. Argumentava-se da seguinte maneira: o essencial do empreendimento todo é a ideia de construir uma torre que alcance o céu. Ao lado dela tudo o mais é secundário. Uma vez apreendida na sua grandeza essa ideia não pode mais desaparecer; enquanto existirem homens, existirá também o forte desejo de construir a torre até o fim. Mas nesse sentido não é preciso se preocupar com o futuro; pelo contrário, o conhecimento da humanidade aumenta, a arquitetura fez e continuará fazendo mais progressos, um trabalho para o qual necessitamos de um ano será dentro de cem anos realizado, talvez em meio e além disso melhor, com mais consistência. Por que então esforçar-se ainda hoje até o limite das energias? Isso só teria sentido se fosse possível construir a torre no espaço de uma geração. Mas não se pode de modo algum esperar por isso. Era preferível pensar que a geração seguinte, com o seu saber aperfeiçoado, achará mau o trabalho da geração precedente e arrasará o que foi construído, para começar de novo. Esses pensamentos tolhiam as energias e, mais do que com a construção da torre, as pessoas se preocupavam com a construção da cidade dos trabalhadores. Cada nacionalidade queria ter o alojamento mais bonito, resultaram daí disputas que evoluíram até lutas sangrentas. Essas lutas não cessaram mais, para os líderes elas foram um novo argumento no sentido de que, por falta da concentração necessária, a torre deveria ser construída muito devagar ou de preferência só depois do armistício geral. As pessoas, porém, não ocupavam o tempo apenas com batalhas, nos intervalos embelezava-se a cidade, o que, entretanto, provocava nova inveja e novas lutas. Assim passou o tempo da primeira geração, mas nenhuma das seguintes foi diferente, sem interrupção só se intensificava a destreza e com ela a belicosidade. A isso se acrescentou que já a segunda ou terceira geração reconheceu o sem-sentido da construção da torre do céu, mas já estavam todos muito ligados entre si para abandonarem a cidade. Tudo o que nela surgiu de lendas e canções está repleto de nostalgia pelo dia profetizado em que a cidade será destroçada por um punho gigantesco com cinco golpes em rápida sucessão. Por isso a cidade também tem um punho no seu brasão (Franz Kafka - Narrativas do Espólio
Tradução de Modesto Carone , direto do alemão).