quarta-feira, 27 de abril de 2011

Os sentidos e as histórias de amor

A respeito de uma conversa que começou com o fascinante personagem Jean Baptiste Grenouille, do romance "O perfume", de Patrick Süskind, para depois perder-se em uma curta percepção sobre os sentidos.
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As histórias dos divórcios estão cheias de amores à primeira vista. Isso porque é bem possível que não se trate de uma primeira vista, ou mesmo de repetidas vistas o amar. Cá comigo, estou convencido que não de trata de ver, mas de entender e acolher, duas ações que se encontram longe do abrigo das vistas, sejam elas quantas forem...

Não se nega o quanto pode atrair uma bela imagem, ou mesmo uma imagem não tão garbosa, contanto que pareça bela, pois para os efeitos da visão, o que parece é. Não se nega todo o resto - que não é pouco - que se ajunta ao primeiro sentido, e se o denomino assim, o faço pelo hábito centenário de resignar-me ao império da visão. Entretanto, a maciez do tato, as ondas melífluas que dominam o olfato, o gosto indescritível do beijo e o gozo dos lábios e dos gostos que assomam à boca, bem como os sons que tornam tudo um conjunto presente e atual, mesmo quando se tornam memória, serão sempre a memória daquele tempo, compõe uma obra infinitamente mais rica do que somente a visão seria capaz.  Também isso não se nega. Uma imagem sem seu todo, sem os sentidos ainda que parcialmente articulados está destinada ao esquecimento. Daí acreditar que “à primeira vista” seja uma antonomásia, pois creio que se deveria entender “à primeira vista dos sentidos”... mas a esse ponto já estou por minha própria conta.

domingo, 24 de abril de 2011

Direito e literatura

“Advertiu que o homem, uma vez criado, desobedeceu logo ao Criador, que aliás lhe dera um paraíso para viver; mas não há paraíso que valha o gosto da oposição. Que o homem se acostume às leis, vá; que incline o colo à força e ao bel-prazer, vá também; é o que se dá com a planta, quando sopra o vento. Mas que abençoe a força e cumpra as leis sempre, sempre, sempre, é violar a liberdade primitiva, a liberdade do velho Adão. Ia assim cogitando o conselheiro Aires”(Machado de Assis, Esaú e Jacó).



O mundo das Leis compõe-se antes de palavras que de Leis. Às leis precedem os verbos, as construções sintáticas, a morfologia e a semântica que nos permitirá entender o que se pretende comunicar. Às Leis precede o texto.

            Uma pergunta fundamental que, como tudo o que é fundamental, muitas vezes escapa sorrateiramente a todos é o que, afinal, existe no texto legal que o diferencia do texto literário.? O que existe entre a Lei e a literatura que permite ao homem médio, mesmo sem tal consciência, jamais confundir o significado da Ofélia jazendo no lago, em Hamlet, com o “matar alguém” inscrito no art.121 do Código Penal Brasileiro? Simples: existe a expectativa que o leitor nutre quanto a eles ou, em outras palavras, das Leis espera-se o comando e da literatura, a expressão do belo.

            Ambos são textos, mas a distância que o leitor observa entre eles é imensa por buscar que eles lhe realizem desideratos em geral desencontrados como, por exemplo, o antagonismo  limitação x ilimitação, ordem x loucura, indiferença x envolvimento, sociedade x indivíduo.  Nesse sentido, o contexto do leitor, suas expectativas, seus sentimentos face ao que deseja conhecer é que cria o texto.

            Tomar consciência de que cada texto possui uma função específica, portanto, permite compreender os diferentes significados que o Direito e a Literatura possuem no mundo das letras. Contudo, enquanto textos encontram-se sujeitos a influências sociais semelhantes nas mesmas épocas em que são produzidos. A Literatura, assim como o Direito, também espelha valores e imagens, expressa realidades as quais se comunicam com o intérprete de maneira aproximada nas duas áreas. Benjamin Cardozo, juiz da Suprema Corte americana nos princípios do século XX, defendia a possibilidade de interpretar-se os textos jurídicos como textos literários, rompendo assim com a crença absoluta de que a precisão da linguagem legal tornaria as Leis infensas à mutabilidade, à divergência interpretativa, à manipulação estética do simbolismo das expressões jurídicas. Desse ponto de vista, assim como as obras literárias, as Leis podem conservar sua relevância, mas autorizar que os intérpretes atualizem o sentido de suas expressões conforme passem a plasmar outros valores no contexto da mudança social.

            De outro lado, o Direito muitas vezes representou e ainda representa um papel na literatura universal e brasileira. Não é possível que tenhamos o testemunho de um bacharel brasileiro do século XIX que nos possa descrever seus trejeitos característicos, o lugar social que ocupava, suas virtudes, seus maiores defeitos e preconceitos, sua posição política a não ser que recorramos a um Machado de Assis, a um Joaquim Manuel de Macedo, a um Aloísio Azevedo. Caso se deseje ampliar o estudo, a literatura ensejaria  um cotejo internacional  com um Tolstoi, Gogol, Balzac, Kafka, Twain, Dickens para citar alguns, dentre outros autores, que consagraram impressões sobre o mundo das Leis e seus homens nas suas sociedades.

            Mas ainda que se considere o argumento de que a literatura pode revelar valores e imagens sobre o mundo das Leis e que as Leis possam valer-se da visão literária para sua inteligência, é possível que sejam essas contribuições mais interessantes aos historiadores, sociólogos e filósofos do Direito que ao profissional e ao estudante. Para o historiador, para o sociólogo e para o filósofo o singular fato da literatura lidar com valores sociais já lhe justifica a importância heurística, mas o que a aproximação do mundo das Leis da literatura é capaz de dizer a todos além disso?

            A literatura como arte é cruamente humana. Seus requintes ou sua sofisticação, sua rudeza ou sua simplicidade, sua verborragia ou sua aridez, qualquer que seja seu estilo e forma prestam-se ao primeiro e final serviço de mostrar ao homem a medida de sua própria humanidade, na sua pequenez vexatória, quando seja assim, e na sua grandeza redentora, quando o valha.

            Ao pregar-se a necessidade de aproximar do texto legal o texto literário, do mundo das Leis o mundo das letras, por um lado restaura-se um pouco mais de verdade às coisas, já que as Leis nascem das letras. Doutra metade, outrossim, restaura-se uma verdade quisera mais profunda: a de que as Leis não nos servem senão pelo que de humano pretendem realizar. O que nos desumaniza deve perecer. Lembrar d’O processo, de Kafka, d’O homem sem qualidades, de Musil ou d’O estrangeiro, de Camus tem o condão de dar-nos uma consciência muito mais plena e mais abrangente da dinâmica, dos valores e das Leis na sociedade atual que qualquer texto legal, pelo drama humano que revelam. A literatura faz-nos perguntas e as perguntas devem preceder as respostas, sempre.

           
            Esse não é um manifesto, mas o Direito e Literatura pretende ser uma escola. Não é manifesto porque não há método previamente definido e os fins são muito mais variados do que podemos agora descrever. O fundamento, entretanto é claramente a liberdade intelectual, a liberdade de oposição, a irresignação a que se refere belamente o Conselheiro Aires.  Estejamos irresignados com o encarceramento do pensamento, com as fórmulas repetidas incansavelmente, com a ausência de crítica, com a leitura débil e escassa, com a mediocridade. Estejamos irresignados com um Direito que nos desumaniza.

            As Leis e as Letras para quem busca o homem são, afinal, um só texto.




quarta-feira, 20 de abril de 2011

Informática não melhora desempenho do Judiciário

Há poucos dias atrás resolvi publicar um texto do Prof. Dr. José Reinaldo Lima Lopes elaborado em 2005, avaliando o silêncio da reforma do Judiciário da EC 45/2004 a respeito do sistema cartorário brasileiro, notá na qual ele questionava o excesso de confiança na tecnologia da informação para "resolver" os problemas graves como a morosidade e a corrupção. Eis nota de hoje da Agência Brasil a respeito.
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Agência Brasil, de Brasília

20/04/2011 Valor

A informatização de processos e a contratação de mais
servidores, geralmente apontadas como ferramentas importantes para
agilizar a tramitação no Judiciário, não se mostram tão eficazes após uma
análise detalhada. A conclusão faz parte de um estudo feito pelo Instituto
de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Conselho Nacional de Justiça
(CNJ) sobre o custo da execução fiscal na Justiça Federal.

Em relação à informatização, o levantamento aponta que não foram
identificadas variações significativas de desempenho entre as varas que
usam processos físicos, digitais ou virtuais. Entretanto, lembra que a
amostragem de processos virtuais foi baixa e que isso pode ter
influenciado o resultado. "Por outro lado, não se deve desprezar a
possibilidade de que a informatização realmente não esteja exercendo o
impacto esperado sobre o processamento das ações."

O estudo também critica o fato de que a informatização não tenha sido
seguida por mudanças organizacionais e de treinamento de pessoal. Segundo
os especialistas, a digitalização apenas muda o suporte do processo, mas
os ritos continuam os mesmos. "O ganho obtido com a supressão de
determinadas tarefas burocráticas em função da digitalização acaba sendo
anulado pela criação de novas tarefas, como o escaneamento de peças
processuais", diz o estudo.

Ainda, segundo o levantamento, as diferentes formas de organização de
trabalho nas varas também são irrelevantes em termos de produtividade,
assim como a contratação de pessoal. "Neste estudo não se observou
qualquer evidência empírica significativa de que o quantitativo de
processos por serventuário esteja correlacionado com o tempo de duração do
executivo fiscal, nem com a probabilidade deste (processo) sofrer baixa
por pagamento", diz o estudo.

sábado, 16 de abril de 2011

Os blogs e a censura: para além do debate paroquial

Repercuto aqui no Scripta Manent texto do Prof.Paulo Klautau Filho que lança uma opinião lúcida acerca de um problema que tem sido discutido no nosso Estado como "bate-boca de feira", o que diminiu suas dimensões e gravidade, bem como embota a crítica necessária para entendermos o que está em questão para além das vaidades e excessos. Obrigado, Paulo!

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Sobre juízes e liberdade de imprensa e de expressão

por Paulo Klautau Filho, sábado, 16 de abril de 2011 às 08:38
Oi, Luiz Arthur!
Desculpe-me só agora responder. Olha, eu já havia proposto, aqui e em listas de professores e advogados, uma discussão a respeito do caso da Perereca. (não conheço direito o caso do Blog do Barata)
A primeira coisa que posso te dizer, depois disso, é que nosso meio jurídico, com dignas exceções, continua politicamente omisso, covarde e medíocre, pois o interesse em discutir questões desse tipo praticamente inexiste. Digo isso, porque a causa extrapola a briga de quintal entre a blogueira "tresloucada e inconseqüente" e o magistrado "narciso, autoritário e arrogante".
Envolve interesse da sociedade na definição do alcance da proteção da liberdade de imprensa e de expressão. E decisões equivocadas têm ocorrido aqui e em todo Brasil. Veja o caso do filho do Sarney contra o Estado de São Paulo, por exemplo.
A decisão contra a Perereca foi excessiva e desproporcional. A blogueira não pode mais nem escrever o nome do Desembargador (nem que seja pra elogiar!). E isso é censura prévia sim. Além disso, a celeridade recorde com que a medida liminar foi concedida indica corporativismo. Como é "da casa", o Desembargador teve tratamento muito mais expedito do que a grande maioria dos cidadãos. Isso, por si só já, é grave. Aliás, a audiência no juizado especial do Jurunas ocorrerá na terça-feira, 26 de abril, às 09hs da manhã. Vejam quanto tempo, na maioria dos demais casos, demora pra ocorrer uma audiência atualmente nestes juizados. Vou lá, como cidadão interessado, e os convoco  a assistirem, afinal o processo é público e diz respeito a todos.
Lembro que a liberdade de expressão e de imprensa não é um direito apenas de quem emite a opinião e não envolve apenas a pessoa a respeito de quem se fala. Ela é um direito da audiência de ter acesso a todas as opiniões e idéias para que os cidadãos possam formar suas próprias opiniões. Quando um juiz decide o que podemos e não podemos ouvir, a respeito de quem ou do que quer que seja, está agindo de forma deslocadamente paternalista (além de autoritária) e desrespeitosa de nossa capacidade de avaliar o discurso alheio. Se a reputação de alguém é ilibada ela há de resistir a maledicências. A liberdade de expressão e de imprensa protegem, sobretudo, o mau discurso, o discurso destoante, que desagrada. Mas cabe à audiência avaliar a qualidade do discurso e não à autoridade de plantão. E nesse caso temos vár ias autoridades de plantão...
Por isso, insisto: a causa é bem maior do que as partes. Ela tem amplo interesse social e político. É nosso dever (profissionais do direito) deixar isso claro.
Por outro lado, como a própria Perereca reconhece (ponto pra ela), não é nenhuma santa. Penso, por exemplo, que extrapolou ao fornecer o endereço residencial do Desembargador, no mesmo post em que questiona a moralidade do contrato de aluguel de um imóvel de propriedade do magistrado ao Estado. Também fez inferências descabidas de favorecimento do advogado Marcelo Nobre, filho do Desembargador, em concurso público para Procurador do Município de Belém. O Marcelo passou sim no concurso e é profissional de reconhecida competência.
Mas, ainda assim, penso que cabe à platéia (nós) avaliarmos a qualidade do que ela disse. Incomoda-me profundamente a censura que a jornalista sofreu e o modo autoritário como ocorre.

sexta-feira, 15 de abril de 2011

O diagnóstico "invisível" da morosidade do judiciário brasileiro

Passados quase sete anos da Emenda 45/2004 e seus inegáveis avanços ao Judiciário brasileiro, um problema de base continua intocado. Recupero um texto preciso sobre o assunto publicado logo após a reforma do judiciário para que, mais distantes no tempo, vejamos que os obstáculos do cotidiano da Justiça parecem estar invisíveis para nós...

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São Paulo, terça-feira, 20 de dezembro de 2005 


Reformar cartórios para reformar a Justiça

JOSÉ REINALDO DE LIMA LOPES

Passado um ano da promulgação da emenda constitucional nº 45 (reforma do Judiciário), há um tema que ainda merece análise. Trata-se do sistema cartorário brasileiro. Durante o debate da reforma, falou-se dos órgãos de poder (os tribunais superiores), falou-se -pouco- da legislação processual, mas nada se falou da instância por meio da qual se realiza efetivamente o processo no Brasil: o cartório.
Tudo passa por ele: o protocolo e a juntada das petições, as inúmeras certidões disso e daquilo (de publicação, de intimação, de decurso de prazo, de trânsito em julgado, de expedição de guias de levantamento, de... certidã! o de qualquer coisa que se possa imaginar), os despachos de "mero expediente" (que tantos agravos geram), o controle da agenda de audiências.


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Foi emendada a Lei Maior, mas sem reformar o rés-do-chão do foro talvez não obtenhamos os resultados esperados
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Com o cotidiano do processo dependendo mais do balcão do cartório do que da sala de audiências, o que dizer da sua atual organização? Embora os códigos processuais sejam grandes rotinas elevadas à categoria de lei visando garantir direitos fundamentais, não se vê gente especializada na administração forense, não há serviços profissionais de administração cartorária. Sobrevive-se no meio dos cartórios e as coisas vão se dando por costume, por tradição, "porque aqui se faz assim"...
Certo que não bastaria a presença de especialistas em administração se ausente o diálogo com os profissionais do direito. Diferentemente das organizações privadas, que podem limitar seu público e defi! nir seu próprio ritmo de expansão, o serviço judiciário é universal e deve receber demandas em qualquer número, venham de onde vierem.
Assim, o profissional da administração judiciária precisaria de uma formação especial, para levar em conta a lei e os conceitos jurídicos já consolidados.
Um exemplo da falta de comunicação com o direito se dá na estranha classificação dos processos feita pela Justiça Federal. Seu sistema de informações fere a mais elementar lógica processual: classificam-se as ações em "ordinárias", umas, e em "declaratórias", outras!
Qual o problema disso? Ora, "ordinária" é uma característica do rito da ação (procedimento), "declaratória" é uma característica do conteúdo da sentença (provimento). Um sistema como esse jamais "fechará", pois usa simultaneamente dois critérios diferentes para classificar seu universo (pelo procedimento e pela espécie da decisão).
Outra questão ainda mais importante é a incompatibilidade prática entre o sistema cartorário! (a palavra "cartório" indica o local onde se colecionam as "cartas", ou papéis) e duas idéias sempre mencionadas e pouco realizadas: a oralidade e a concentração do processo.
Há décadas que se fala disso no Brasil. Elas já estão previstas em lei. Mas, funcionam? Não, e devido, entre outras coisas, a um pequeno dispositivo chamado "protocolo", que perpetua o domínio do escrito. O protocolo de papéis e petições, feito nos cartórios, impede que o desenvolvimento do processo se dê primeiramente nas audiências.
O processo "anda" até alguém protocolar alguma coisa... Um papel. Que fazer? Juntar aos autos? Mas, sem ordem de quem dirige o processo (o juiz)? Impossível. Fazer o quê? Mandar ao juiz, que manda juntar. Como o cartório tem muito a fazer, pois tudo é protocolado, os autos ficam aguardando sua vez de ter a "juntada". Depois de "juntado" o papel, é preciso intimar a parte contrária, e aí começa a "via crucis"...
A concentração e a oralidade permitiriam que o juiz ouv! isse as partes simultaneamente, em audiência, nos momentos designados.
Deposita-se hoje a esperança de solução nos meios eletrônicos. Eles ajudarão a minimizar o problema? Talvez não, pois o que se observa não é a supressão das muitas certidões, juntadas, fases e passos do processo. Está-se apenas a fazer tudo isso com a máquina de escrever eletrônica. Assim, é possível que diminuam os espaços necessários para guardar os papéis, mas não sei se diminuirá ou quanto diminuirá o tempo dos processos, pois os passos, que antes eram dados em "papel", continuarão os mesmos, dados agora por via eletrônica.
Finalmente, há uma curiosa disposição constitucional transitória, a do art. 31, que diz, em pleno 1988: "Serão estatizadas as serventias do foro judicial...". Estamos no início do século 21 e o sistema brasileiro abriga ainda uma instituição feudal-corporativa: o cartório privado! A Justiça brasileira ainda hoje nem mesmo é estatal.
Quando olhamos para o que foi o debate a respei! to da reforma do Judiciário, vemos que não houve diagnóstico de coisas tão importantes, que tudo foi discutido ou na esfera da grande política de Estado ou na comparação com modelos estrangeiros em que não há cartórios (como nos Estados Unidos) -ou não os há privados. Foi reformada a Constituição, mas sem a reforma do rés-do-chão do foro talvez não obtenhamos os resultados esperados. Doravante valeria a pena pensar nessas questões mais cotidianas, nas quais estão alguns dos gargalos mais difíceis de eliminar.

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José Reinaldo de Lima Lopes, 53, doutor em direito pela USP, é professor livre-docente da Faculdade de Direito da USP e da Escola de Direito da FGV-SP. Publicou, entre outras obras, o livro "O Direito na História".

quarta-feira, 13 de abril de 2011

Depois do grotesco, o patético

Na continuidade da postagem anterior

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Somos cada vez mais numerosos, menos diversos. Somos tantos, mas é como se fôramos poucos. Tantos estilos, tantas possibilidades e tão poucas escolhas são feitas. Desejamos muito, mas sempre as mesmas coisas.

A individualidade não é um lugar de sonho e desejo. Não sou eu e minha capacidade de querer e decidir. É um lugar ao qual eu somente posso chegar comigo mesmo. Mas repito, não sou eu. Isso é precisamente o que desejamos que exista porque não está lá fora, mas eu francamente não sei o que está lá fora, do que se trata. Sei que se nos impõe, que nos cerca e envolve, que nos faz esquecer onde estamos e onde está.

Procuramos algo. É perceptível. Parece-nos que basta achar, portanto. Não é, assim, o mundo que não nos basta, mas nós que não nos bastamos. Contudo, ao invés de nos abrirmos cada vez mais para a busca, fechamo-nos. Buscamos o próprio desejo que somente se satisfaz, satisfazendo-se sempre. Ele não cessa. E nisso nos deseja mais do que nós próprios a ele.

Busquemos, então, dentro de nós... Buscar o quê? Podemos efetivamente encontrar algo que não se procurava ou não se sabe o que é? Como diferenciar as características da paisagem do próprio local? Como saber se somos aquilo que vemos? E quem vê a nós que vemos, vê a mesma coisa? Por que se vê outra, serão quantos “eus” no mesmo local?

O “dentro de nós” não nos é acessível. Serão lembranças, medos que não poderíamos diferenciar se estão no passado ou fazem parte de nosso presente. A maior parte deles sequer conhecemos. Na maior parte do tempo estão presentes, influenciam e provocam nossas ações sem que nos demos conta disso. Nossa vida consciente, adulta é, em mais da metade dos nossos dias, ignorada e inconsciente para nós.

Falamos porque repetimos a fala dos outros. Não inventamos uma língua para nós próprios. Reagimos repetindo os signos que querem dizer aquilo que queremos dizer ou nos é necessário dizer. Nisso adaptamos as medidas dos sentimentos aos gestos cognoscíveis. O que não pode ser reconhecido, não será expresso, mas também não será sentido. Não sentimos o que não podemos conhecer, mas geralmente não conhecemos o que sentimos.

Não somos consciências, mas sim inconsciências ambulantes. Por isso é fácil que nos igualemos à medida mesmo em que desejamos nos diferenciar dos demais. Se os impulsos são semelhantes, mesmo a diferença deverá ser reconhecida como tal sob pena de não ser diferença. Hoje, não há nada mais previsível que a diferença.

Não podemos buscar o indivíduo na diferença e na consciência, assim como não podemos fazê-lo com a similitude e com a inconsciência. Onde devemos buscar?

Hegel afirmara que o problema da lógica era o início. Para Luhmann, não era esse o problema. Tudo inicia com o já estar iniciado. Se o problema não é o início, nem mesmo o fim o será. O problema é o presente e sua improbabilidade, sua presença, seu poder de surpresa, seu existir porque não existe, o fato de ser um tempo que tem tempo.

domingo, 10 de abril de 2011

A comédia do grotesco

Em meados de 2006, por ocasião de uma aula do doutorado, o Prof. Dr. Raffaele De Giorgi propôs-me essa afirmação do filósofo, teatrólogo e escritor suíço Friedrich Dürrenmatt, a qual depois ele transcreveu em trecho do livro “Direito, tempo e memória” (Quartier Latin): “o teatro do mundo pode ser representado somente pela comédia. Na base da tragédia há culpas, afã, medida, clareza, responsabilidade. Existem as categorias do direito, existe a unidade aristotélica do espaço e do tempo. A comédia é a representação do grotesco". 

Dürrenmatt referia-se ao nosso tempo e essa tese, que me impactou à época, voltou-me fortemente às idéias essa semana depois da tragédia do Realengo. Aí o ponto: tragédia ou uma comédia em que ninguém ri? 

Em 2006, concebi uma breve narrativa sobre Gregório, um personagem mimetizado das histórias de Dürrenmatt e que pôde, passados esses anos, fazer-me entender o que dizia naquela ocasião. Escrevia, então:

“Para esse personagem, Gregório, o problema do mundo não era a ausência de valores, mas o seu excesso. Todos sabiam de tudo. Todos tinham e desejavam afirmar razões. No universo mosaico dessas verdades múltiplas, nenhuma poderia render-se a outra, nenhuma anularia a outra, e todas se rendiam um estado comum de guerra e cegueira. Muitas verdades não equivalem, como prega a lógica monolítica da Verdade, a nenhuma verdade. Muitas verdades permanecem sendo muitas verdades e por isso mata-se, tortura-se, depreda-se... Esse é o paradoxo fundamental aos olhos de Gregório: cercamo-nos de verdades como se sem elas houvesse apenas a ausência e o vazio. Cercamo-nos de verdades e de guerras e tememos ambas, mas menos a elas que ao vazio. A eloqüência das verdades não raro nos atormenta, mas sem elas o silêncio... céus, o silêncio insuportável! Desejamos a verdade para estarmos em paz, na guerra. Para juntarmo-nos ao medo, por termos medo. Para atormentarmo-nos com o rumor intermitente que nos incomoda, buscando, entretanto o descanso... Encantamo-nos nos nossos discursos com a maravilha da verdade e tudo que ela nos traz – sem que possamos dize-lo, claro – quando somente podemos maravilharmos no mistério. Ao buscarmos a verdade, pensa Gregório, distanciamo-nos de Deus...

“Gregório pensa, igualmente, que o inferno existe para as pessoas de boa intenção e de fé. Ele nos tortura mesmo antes de poder-se conhecê-lo e assim o faz através da fé viva de sua própria existência. Ele é a ameaça constante mesmo que ao lado da promessa não menos presente do paraíso. Mas esse é distante, de estreita entrada, enquanto o inferno nos cerca a todos indefinidamente. Se Gregório não acreditasse, ao menos, se fosse ruim, hedonista ou indiferente, para ele o inferno não existiria ou, melhor, sequer faria sentido, o que é uma afirmação de poder que não é possível a nenhum homem de fé. Assim, Gregório afunda-se novamente na contradição e no paradoxo: o inferno apenas cerca os que crêem no bem...

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“Gregório ouvia todas as noites as histórias contadas pela Senhora aos moradores da pensão. Era agradável a Senhora, importava-se com ele e com todos. Gregório nunca falava e nunca faltava aos encontros noturnos que acompanhavam a digestão da sopa leve. Era regular nos seus hábitos e sentia que era sua propriedade mais legítima. Gregório ouvia as histórias cheias de entrelinhas das quais não se dava conta. Tais entrelinhas eram evidentes, mas não para ele. Para Gregório as histórias apenas diziam aquilo sobre o que podíamos recordar. Não se tratava de evidências, portanto, mas de memórias. Contudo, Gregório jamais se lembrava da história da mesma maneira, porque sempre que as contava para si, lá estava ele na história e ela não fazia o mesmo sentido. Não era como o personagem de Borges, cuja memória representava o peso insuportável da inexistência do tempo. Havia tempo para Gregório e ele podia ordená-lo, e assim ordenava seus hábitos. Havia igualmente o espaço, o seu quarto, a praça, a sala de jantar e de estar. A questão era que tudo que a mente de Gregório tocava, tornava-se seu. Era sempre Gregório que observava e ao fazê-lo recriava, ainda que nenhuma linha fosse alterada nas histórias. Aos poucos, ao longo das histórias que Gregório reconta para si, as entrelinhas revelam-se paradoxos, os mesmos que aqui fui apresentando e o mundo de Gregório vai tornando-se grotesco, mas tudo se altera, nada se altera. Gregório vê o belo, adora as histórias, vive seu hábito diário. O grotesco não é o descalabro, o feio, o apocalipse. É a ausência do centro, da pirâmide, dos ângulos alinhados. É a imensa riqueza, dos detalhes, das verdades. Todos podem conviver com isso e perceber que buscamos esse deslumbramento. Perdemo-lo, no entanto, na ordem do belo grego, na simetria, na ordem hierárquica. Gregório não sente o medo de que além das histórias recontadas esteja o vazio. Qualquer coisa que esteja além já está conosco agora. As histórias nunca estão sozinhas. Somente existem onde há quem as conte e quem as ouça. Assim também, não estamos sozinhos nós, que podemos recontar as histórias a partir de nós próprios...

“Ítalo Calvino disse que não encontraríamos no séc. XXI nada além daquilo com que pudemos nele chegar. A história de Gregório, gostaria que representasse essa chegada.”

Sandro Alex Simões

sábado, 9 de abril de 2011

Agradecimentos

Caríssimos,

Preciso agradecer a acolhida do Scripta Manent. Desde a primeira mensagem, bastante vacilante, temos um mês e três dias, tempo no qual agregaram-se 53 seguidores e cerca de 5.000 visitas. Em termos de blogosfera não sei dimensionar o significado disso e ainda bem que não preciso fazê-lo, entretanto opto por critérios mais rés-do-chão e aos quais estou familiarizado: tenho aqui uma sala de aula, pelo menos, e alguns interessados que passam pelo corredor e olham, eventualmente escutando o que lá se diz. Eu não preciso de muito mais para deixar-me sumamente satisfeito e estimulado.

O tom, esse ajustarei aqui e acolá. Algumas  postagens agradaram e notei que outras foram hostilizadas ou ignoradas, invarialvelmente aquelas em língua estrangeira. Da minha parte, gostaria de verticalizar experiências com a crítica literária mesmo e não apenas com a interface entre a literatura e o direito. Autores como Terry Eagleton, Paul Ricouer, Harold Bloom, Carpeaux, Haroldo de Campos e Benedito Nunes não deram os ares de sua graça por aqui -ao menos de maneira nominal, senão em rápida menção- e a intenção é de que aqui encontrem morada useira e vezeira.

Neste pouco mais de um mês, acima de tudo, sou devedor dos comentários sensíveis e atentos de diversos alunos e professores, amigos próximos e mais distantes, alguns dos quais voltei a encontrar neste espaço virtual, que mui rapidamente vai se tornando uma extensão do meu living room, expressão que define mais adequadamente meu sentir no espaço que o correlato em português, porque exprime, mais do que o estar, o compartilhar, assim como me exortou o padrinho Yúdice na sua cordial saudação de boas-vindas.

Por isso, meus agradecimentos sinceros e, na superlativa medida em que isso seja possível virtualmente, meus abraços a todos vcs que por aqui estiveram. Voltem sempre!

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Breves notas sobre a Orestéia, de Ésquilo (Nota Última)


“Eis que subvertem as soentes
Leis, ao prevalecerem
A justiça e o dano
Deste matricida.
Já este ato conciliará todos
Os mortais com mão leve:
Muitas dores de fato
Infligidas por filhos esperam
Pelos pais em tempos depois.

Nenhum rancor destas Loucas
Vigias de mortais
Perseguirá algum crime,
Permitirei toda morte.
Ao proclamar os males do próximo
Buscará um junto ao outro
Pausa e repouso de aflições;
E vacilantes remédios serão
A inócua medicina do mísero.”
(Eumênides, versos 491-505)

                Esse excerto contém aquilo que tenho denominado de “argumento social” das Eríneas, pois a esse ponto do julgamento elas já não insistem no seu direito tradicional de exigir a punição de Orestes, mas procuram intimidar os julgadores com a perspectiva consequencialista da decisão. Doutro modo, ao absolver-se Orestes, um matricida, nenhum outro crime poderia ser punido, dada a gravidade daquele que foi perdoado.
                O argumento é forte e inegavelmente inteligente, atacando ao mesmo tempo a funcionalidade da manutenção do costume e da tradição, mas também agindo como uma ameaça eficiente. A autoridade tradicional das Eríneas, como representantes do talião, é a que está compreendida na vinculatividade da consuetudo (“opinio iuris et necessitatis”), ou seja, aquilo que é tradicional e antigo obriga porque ainda está presente na comunidade. É quase uma tautologia, dado que obriga porque obriga, mas devemos entender também, como sugerem as Eríneas, que a regra obriga porque tem funcionado. Não fora assim, não teria subsistido tão longamente, não teria tornado-se tradição. Tanto é assim, que elas ameaçam –ao menos inicialmente- não com sua revolta e violência, mas com a mera ausência da regra. Se for por terra o talião, se esgotado seu poder simbólico, o que ficará no seu lugar? Fora do costume, o que há que nos ajude a manter a sociabilidade mínima?

                Ocorre, entretanto, que a Orestéia não trata, ao fim e ao cabo, do julgamento de Orestes, mas do julgamento do talião. Orestes, apesar de tudo, matou a mãe e poderia ter sido condenado mesmo nas regras do Tribunal do Areópago, não obstante foi absolvido: por quê? Penso que essa foi a única maneira de deixar clara a nova ordem instaurada na polis. Condená-lo, seja pelas regras do talião, seja pelas do Tribunal (processo) seria uma vitória das Eríneas e da antiga ordem com elas. Outrossim, na mitologia grega os deuses somente interferem a favor dos mortais quando isso envolve seus próprios interesses e não para defender virtudes ou a justiça. Os deuses gregos não são éticos. O interesse de Atena representa a lógica da pólis que transcende e re-significa o conflito familiar para tratá-lo como um conflito metafamiliar ou político, o qual influencia nos destinos da cidade. A pólis é integrativa das diferentes atividades sociais e eleva o patamar da ágon, que desta feita ocupa os espaços antes vazios de poder entre as gens das sociedades segmentárias.

                Porém, impõe-se notar que a transformação surgida com a Justiça Pública do Areópago não é uma ruptura, nem uma descontinuidade, senão uma re-significação, como dito acima. É um processo de mudança mais sutil e eficaz, sendo amplo e profundo, mas longe da fragmentação a que a mentalidade moderna das revoluções tende a nos habituar, pois todos os atores processuais envolvidos permanecerão nos seus lugares, mas o cenário altera-se substancialmente. As Eríneas continuarão inspirando o terror, o medo, os acusadores continuarão acusando e os réus devem defender-se. Haverá o crime – a húbris – e haverá a punição. Entretanto, o ambiente é o da pólis e isso mudará toda a semântica. Atena dirá a seguir na tragédia, exaltando o papel do Areópago:

“O povo de Egeu terá no porvir doravante
E ainda sempre este conselho de juízes.
Assenta-se neste penedo, base e campo
De amazonas, quando por ódio a Teseu
Guerrearam e ergueram nova cidade
De altos muros contra nossa cidade,
E sacrificavam a Ares, donde o nome
Pedra e penedo de Ares. Aqui reverência
E congênere pavor dos cidadãos coibirão
A injustiça dia e noite do mesmo modo,
Se os cidadãos mesmos não inovam as leis.
Quem poluir a fonte límpida com maus
Afluxos e lama, não terá donde beber.
Aconselho aos cidadãos não cultuar
Nem governo nem despotismo;
Nem de todo banir da cidade o terror.
Que mortal é justo, se não tem medo?”
(Eumênides, versos 685-700. Grifos nossos)

                François Ost afirma de forma instigante que foi necessário mudar para que tudo permanecesse, o que não deve ser entendido como uma farsa ou simulacro de mudança, senão como a sutileza da sinergia do processo civilizatório, do qual faz parte a história do direito. Ele se faz sentir com os pequenos, mas progressivamente notáveis movimentos da mudança da linguagem e dos horizontes que ela é capaz de traçar para cada contexto histórico. Na alteração da atenção e da reação ao que era banal, mas passou a ser dramático ou vice-versa.
                As transformações históricas mais profundas nos processos civilizatórios são aquelas, como as representadas na Orestéia, que operam uma verdadeira revolução por dentro das palavras, fazendo com que, mesmo estando nos mesmos lugares, o mundo ao redor das pessoas seja outro e outros os horizontes. De heroínas malditas e soberanas do talião, as Eríneas passam a ser um símbolo subserviente da nova Justiça Pública, sem palavra e sem ação, que agora pertencem à gramática do processo.

terça-feira, 5 de abril de 2011

Vanitas vanitatum et omnia vanitas (Coélet)

Esse instigante desabafo, especialmente destinado ao professores de direito, devo ao amigo Prof. Paulo Klautau Filho.

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Mal trago en Derecho (http://seminariogargarella.blogspot.com/)


Ayer tuve una noche amarga en la Facultad de Derecho. La comento no para dar a conocer una historia personal, sino porque creo que en el relato está en juego un hecho público serio.

Teníamos una defensa de tesis, de una de las principales antropólogas indigenistas de la Argentina. La doctoranda había hecho una tesis sobre las dificultades de una serie de comunidades indígenas, en el norte del país, para conseguir la titularidad de las tierras que ocupaban. El trabajo hablaba sobre los modos en que el derecho se empeñaba en dominar a estas comunidades, con propuestas de asimilación y sometimiento, en lugar de reconocer, en primer lugar, el valor de "los otros". En un esfuerzo de diálogo notable, la antropóloga se había convertido en experta en esta área del derecho, aunque el objeto de su tesis era otro (incluyendo la recuperación de "voces" postergadas por el derecho). Para mí, se trataba de un trabajo muy importante, destinado a ayudar al derecho a pensar e interpretar temas y conceptos a los que alude (territorio; comunidad; identidad) sin mayor conocimiento.

En el jurado éramos tres. Uno de los principales civilistas de la Argentina; quien tal vez sea el constitucionailsta más reconocido del país; y yo. En lo personal, no conozco demasiado al primero de los jurados, pero puedo decir que parecía una muy buena persona. Sin embargo, es difícil no señalar que en la ceremonia n o estuvo muy bien. Hizo sólo dos preguntas. La segunda: la diferencia entre el Convenio 169 de la OIT (sobre indígenas), y el 106 (la tesis era sobre cualquier otra cosa). La primera y más importante: "por qué no me citó?" Los antropólogos que estaban en la sala abrían los ojos.

El otro jurado se mantuvo en silencio, y habló recién a la hora de discutir la nota. Propuso retener la tesis y pedirle modificaciones: no era lo suficientemente jurídica, no había análisis de derecho comparado. Le explicamos, el director de la tesis (que es un buen amigo) y yo, por mil caminos diferentes, por qué la tesis era jurídica, por qué el derecho necesitaba de tesis así; por qué este aporte era imprescindible (sólo ver, como vimos, el modo en que en estas comunidades se piensa la idea de propiedad, y el modo en que el derecho lo hace, ya bastaba para aprobar con aplauso a esta tesis).

Terminamos por "imponer" el aprobado por mayoría, 2 a 1, luego de 4 0 minutos de una discusión dura y, para mí, tristísima, muy amarga, llena de términos ásperos, que iban de un lado al otro de la mesa.

Pienso el caso como extraordinaria metáfora de lo que la tesis nos decía: El derecho necesita colonizar a lo indígena, quitarle la palabra, hacer que hable como él, y hasta que no lo logre, hasta que el otro no se someta y use sus mismas palabras, el derecho no está dispuesto a reconocerlo, porque no lo valora.

Breves notas sobre a Orestéia, de Ésquilo (Nota Segunda)

Agora me condenas ao exílio do país,
Ódio de cidadãos e pragas clamadas do povo,
Outrora nada contrapuseste a este homem
Que desatento como da sorte de uma rês,
Sobejando ovelhas nos lanosos rebanhos, sacrificou a própria filha, meu dileto
Parto, encantador dos ventos trácios.
A ele não devias bani-lo desta terra
Punindo poluências? Testemunha de minhas
Façanhas tu és áspero juiz. Mas digo-te:
Faz tais ameaças cônscio de meu preparo
Em iguais condições. Se por força venceres
Domina-me; se Deus decidir o contrário,
Aprenderás ainda que tarde a ter prudência
(Agamêmnon, versos 1415-1425)

                Luhmann afirma que a história do direito poderia ser contada como a história da “domesticação da violência”. Nesse sentido, é inegável que o talião, visto acima na citação da Orestéia, é ele próprio um disciplinamento da violência e não a sua eliminação.
                A bem da verdade, não creio pertencer ao direito, essa faculdade de eliminação da violência ou harmonização/pacificação social. Imputar ao sistema jurídico essa tarefa é desejar dele mais do que possa, efetivamente, dar. O direito é capaz de sustentar, em determinadas circunstâncias, um liame de sociabilidade baseado na generalização e estabilização de expectativas, fazendo com que mesmo –ou principalmente- as frustrações das expectativas socialmente construídas re-entrem no sistema (input), ao invés de extrapolarem-no como força incontrolável. O sistema jurídico somente é capaz de controlar ou disciplinar aquilo que está sob seu alcance estrutural. Aquilo que está fora para ele é incontrolável.
                Assim ocorre com a violência quando o direito arcaico consegue processualizá-lo na forma da regra taliônica. Em outras palavras, no lugar das guerras intertribais comuns entre os nômades e semi-nômades, com a sedentarização o direito arcaico definirá qual a autoridade responsável pela aplicação de penalidades no âmbito das famílias, que emergem como a diferença da unidade social, e disciplinará um padrão de equilíbrio e proporcionalidade subjetiva na compensação do dano. O talião, assim, costuma-se manifestar nos diversos povos do direito arcaico como uma regra aplicada entre consangüíneos e em situações de dano manifesto, seja ao corpo, seja à propriedade. Trata-se sempre do âmbito do visível e da unidade familiar, ou do extravasamento da unidade familiar baseada exclusivamente na convivência, sendo nesse caso as tribos, cuja ascendência é comum.
                A violência derivada da frustração, nesse caso, é um elemento criativo do direito, cuja modulação dependerá da estrutura da sociedade a qual lidará com tal frustração ou impulso. Quando, no trecho acima, Clitemnestra fala ao coro ela resiste ao povo alegando a tradição da regra taliônica. Ela se coloca ao lado dos deuses, no caso, os deuses pré-olímpicos, dentre os quais as malditas Górgonas (ou Erínias). O povo tenta bani-la, já demonstrando o questionamento da regra taliônica e a progressiva consciência de seu esgotamento, mas encontra a ameaça de Clitemnestra que afirma estar vingando-se legitimamente de Agamêmnon pela morte da sua filha, como aparece no excerto.
                Sobre a frustração como fonte da expectativa normativa expressa no talião, explica Luhmann:
Para a formação mais detalhada desse direito arcaico aquela  baixa complexidade da sociedade significa, então, que os mecanismos elementares da formação do direito atuam de forma não mediatizada. O direito surge inicialmente na frustração e na reação do frustrado, ou seja, na eclosão imediata da cólera, a partir daí ligando-se àquela estreita relação com a força física anteriormente caracterizada. Sem a defesa própria do atingido e sua parentela, sem sua disposição de usar a força, não seria possível separar as expectativas cognitivas das normativas; ninguém saberia quais expectativas deveriam ser mantidas e quais devem acomodar-se às frustrações. As instituições do direito arcaico da defesa própria violenta, da vindita, do juramento e do amaldiçoamento, típicas em sociedades segmentares, não se referem à imposição do direito (...), mas sim a salvaguarda das próprias expectativas, à sua manutenção frente à eventos adversos” (in Sociologia do direito. Rio de Janeiro:Tempo brasileiro, 1983, 186).

                Na próxima nota falarei sobre o arquétipo da justiça na polis e sua relação com o perdão e a memória como virtudes cívicas identificáveis na Orestéia.

segunda-feira, 4 de abril de 2011

Michael Sandel: sobre a justiça e o mercado

Com os rotineiros agradecimentos ao Prof. José Ribas Vieira

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ELPAIS. ENTREVISTA: MICHAEL J. SANDEL Filósofo
"La fe en el mercado elimina el debate sobre ética y justicia"
J. A. ROJO - Madrid - 02/04/2011

Ya sean la tortura, la eutanasia, el aborto, los negocios sucios, el
patriotismo o las altas finanzas, Michael J. Sandel (Minneapolis, 1963)
desentraña cada asunto en Justicia (Debate) analizándolo desde distintas
perspectivas y mostrando su complejidad. El ensayo ha vendido ya un millón
de ejemplares, pero Sandel se ha hecho célebre también por el éxito de la
adaptación a televisión de sus lecciones en Harvard, donde ocupa una
cátedra de Ciencias Políticas. Justicia utiliza la filosofía para
acercarse de la mano de Aristóteles, Kant, Jeremy Bentham, John Stuart
Mill y John Rawls a las cuestiones de nuestro tiempo.


Pregunta. ¿Por qué ocuparse de la justicia ahora, y hacerlo con una mirada
global?

Respuesta. En los últimos años se impuso la idea de que era suficiente con
que la economía funcionara. Y ha sido un error: no se pueden eliminar los
argumentos políticos, y no se puede pensar que el mercado establece por sí
mismo la justicia y la equidad. La fe en el mercado ha eliminado cualquier
debate público sobre ética y justicia.

P. Y ha generado mayores desigualdades. Gracias a los bonus millonarios
que reciben los ejecutivos financieros, por ejemplo.

R. Conviene preguntarse por qué los contribuyentes tienen que contribuir
al enriquecimiento de aquellos que propiciaron la crisis por sus conductas
imprudentes. Pero no solo conviene fijarse en lo que pasa ahora: hay que
analizar lo que sucedió en los tiempos de bonanza. Habría que ver si los
altos sueldos que se fijaron entonces banqueros y agentes financieros
respondían a su talento y a su dedicación o si, más bien, obedecían a
causas externas.

P. Con el argumento de defender la libertad muchas veces se han tolerado
ignominias, como las dictaduras de los países árabes.

R. Los manifestantes de la plaza de Tahrir, por referirme a un caso
concreto, no solo han conseguido que Mubarak abandonara el poder sino que
han obligado a Occidente a enfrentarse al conflicto que existe entre sus
políticas reales y sus grandes ideales. A veces conviene pasar un poco de
vergüenza para hacer autocrítica.

P. Es difícil manejarse en el presente, pero nuestras sociedades también
reclaman que se haga justicia con casos que ocurrieron en el pasado.

R. En las sociedades que han estado divididas o han sufrido guerras
civiles y atrocidades se produce siempre una tensión entre la justicia que
debe hacerse y la reconciliación que se necesita para seguir avanzando.
Pero no es posible reparar el tejido social que se ha roto sin tener en
cuenta la memoria histórica. La responsabilidad moral no es solo
individual, tiene una proyección histórica y colectiva, así que debe
transmitirse de generación en generación. Frente al pasado, la
responsabilidad moral es la de superar divisiones y odios heredados para
convivir en el presente. También ante el futuro, en retos como el del
cambio climático, existe esa responsabilidad moral. Es justo que
procuremos dejarles a los hijos de nuestros hijos un mundo que sea
habitable.

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Para quem deseje assistir às aulas de Michael Sandel, recomendo o sítio http://www.academicearth.org/

domingo, 3 de abril de 2011

Breves notas sobre a Orestéia, de Ésquilo (Nota Primeira)

Em especial, para os meus alunos nesta semana de provas

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Em 598 a.C. Sólon iniciava as reformas sociais mais importantes da história grega com uma profunda reorganização das classes sociais, distribuídas agora segundo sua riqueza, bem como com o estabelecimento de diversas instituições políticas, cujo acesso estava relacionado à estrutura das novas classes.

Assim, a Bulé e o Areópago eram reservados para os membros das famílias mais ricas e a Eclésia era órgão opinativo acessível às classes mais baixas (Thétas), constituída pelos camponeses e artesãos.

As reformas sociais de Sólon serão a influência das modificações que o Rei Sérvio Túlio, etrusco, introduzirá em Roma por volta de 540 a.C, com as centúrias e as comitia centuriata (Fustel de Coulanges. A cidade antiga, pg.141).

O que importa notar para fins desse breve comentário, é que tais reformas nas duas mais relevantes civilizações da antiguidade clássica, operarão a transição entre sociedades organizadas no modelo segmentário (familiar) para um modelo centro/periferia (metafamiliar ou político), cuja lógica é completamente distinta a partir de seus critérios de diferenciação social. 

As sociedades segmentárias são aquelas em que a famílias ou tribos instituem-se elas próprias como diferenças da unidade da sociedade, sendo, segundo Luhmann, a família posterior a sociedade, a qual é marcada pela igualdade da indistinção. As sociedades centro/periferia, por sua vez, funcionam a partir de uma outra distinção fundamental, que é aquela que prestigia pela primeira vez uma tensão daí por diante contínua historicamente, qual seja, aquela que se impõe entre o campo e a cidade. 

Raymond Williams, em estudo fundamental, explica essa oposição nova, emergente da transição acima apontada, da seguinte maneira:

"Obviamente, a cidade se alimenta daquilo que o campo ao seu redor produz. Isso ela pode fazer graças aos serviços que oferece, em autoridade política, no direito e no comércio, àqueles que comandam a exploração rural, aos quais está normalmente associada por vínculos de necessidade mútua de lucro e poder. Mas, então, em pontos marginais, à medida que os processos da cidade vão se tornando até certo ponto autoperpetuantes, e especialmente com a conquista estrangeira e o comércio exterior, surge uma nova base para o contraste entre uma "ordem" e outra. Os agentes do poder e do lucro tornam-se, por assim dizer, alienados, e em certas situações políticas podem vir a tornar-se dominantes. Acima da rede de exploração há o que pode ser encarado como exploração real do campo como um todo pela cidade como um todo" (in O campo e a cidade. São Paulo:Cia. das letras. 2011, 81).

Qual seria, senão a revelação dessa tensão fundamental, o sentido da cautela demonstrada pelo vigia no prólogo da Orestéia, de Ésquilo? Nas palavras de excitação que antecedem a chegada das naus de Agamêmnon, começa a ser descortinado o pano de fundo das intrigas palacianas, observadas pelo povo, que interage no coro, que acusa e amedronta-se com a tirania, que aguarda a justiça do Rei. Diz o vigia:

"Que possa na vinda tomar nesta mão/a mão amiga do senhor do palácio! O mais calo. Grande boi na língua/Pisou. A casa mesma, se tivesse voz, falaria bem claro como eu adrede/A quem sabe falo e aos outros oculto" (Agamêmnon. São Paulo:Iluminuras,FAPESP, 2004:107).

O tom soturno do início da tragédia, repetir-se-á em outras tragédias que terão como cena de fundo a emergência da pólis, do novo modelo de sociedade dominada pela lógica centro/periferia, as quais terão de lidar com a exigência de equilibrar a produção coletiva de bens com critérios de distribuição mais complexos, dadas as diferenças de tarefas e a multipicidade de funções sociais existentes, como a Antígona, de Sófocles, a as célebres passagens do coro reputando o espaço palaciano como inariavelmente inóspito para o povo.

A continuar...