terça-feira, 29 de março de 2011

Entrevista Min.Luiz Fux

Em complemento a minha última postagem, ou a fortiori


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Folha de São Paulo 28 de março de 2011

ENTREVISTA DA 2ª LUIZ FUX

"Debaixo da toga de juiz também bate um coração"

Ministro do STF não aceita ser responsabilizado pelo voto que anulou a
Ficha Limpa para 2010 e diz que tenta equilibrar "razão e sensibilidade"
ao julgar

O ministro Luiz Fux, durante entrevista em Brasília

VERA MAGALHÃES
ENVIADA ESPECIAL A BRASÍLIA

MÁRCIO FALCÃO
DE BRASÍLIA

O ministro do Supremo Tribunal Federal Luiz Fux não aceita ser
responsabilizado pelo voto que anulou a aplicação da Lei da Ficha Limpa
nas eleições de 2010.
Juiz de carreira, disse que procurou argumentos jurídicos para tentar
validar a regra na última eleição, mas não encontrou. "Debaixo da toga de
um magistrado também bate um coração", disse, ao explicar que tenta
equilibrar "razão e sensibilidade".

Folha - Como o sr. se sentiu desempatando uma questão tão controversa como
a da validade da Lei da Ficha Limpa em 2010?
Luiz Fux - Eu não desempatei nada. Apenas aderi à posição majoritária do
Supremo, que era no sentido de não permitir que a lei valesse para as
eleições do mesmo ano. Os votos foram de acordo com o artigo 16 da
Constituição, que é um artigo de uma clareza meridiana. Uma coisa tão
simples que às vezes um leigo sozinho, lendo o dispositivo, vai chegar à
mesma conclusão que eu. O artigo 16 diz que a lei que altera o processo
eleitoral não se aplica na eleição que ocorra até um ano de sua vigência.

Como corte constitucional, o STF deve fazer distinção entre o que deve
prevalecer: os direitos individuais ou os direitos da sociedade?
A Constituição não legitima julgamentos subjetivos. Senão, partimos para
aquela máxima de "cada cabeça, uma sentença", e não vamos ter uma
definição do que é lícito e o que é ilícito. A população só tem segurança
jurídica a partir do momento em que o magistrado se baseia ou na lei ou na
Constituição. A interpretação só se opera quando há uma dubiedade.

Alguns ministros apontaram inconsistências na Ficha Limpa. O sr. acha que,
no futuro, o STF pode derrubá-la?
Nós julgamos a questão do artigo 16, que tornou absolutamente indiferente
a análise das demais questões. Não houve ninguém que tivesse declarado a
lei inconstitucional. Por isso afirmei que fiquei impressionado com os
propósitos da lei, fiquei empenhado em tentar construir uma solução. Tanto
que não consegui dormir, acordei às 3h e levei seis horas para montar o
voto. A partir do julgamento, a única conclusão a que se pode chegar é que
ela se aplica a partir de 2012.

Mas quando o ministro Cezar Peluso diz que nem as ditaduras ousaram fazer
uma lei retroagir para punir crimes, ele não está dando mote para que a
lei seja questionada?
Uma coisa é a anterioridade, prevista no artigo 16, e outra é você falar
em retroatividade. Às vezes há um impulso de se confundir as coisas. Se a
lei pode ser aplicada aos crimes anteriores não foi objeto de debate.
Acredito que isso foi uma manifestação isolada diante do clima que se
criou diante da judicialidade do argumento.

Mas pessoalmente o sr. vê problema nisso?
Hoje não. Mais tarde poderão surgir novas demandas? Poderão. Até por isso
não posso me pronunciar agora, mas eu digo que a lei vale para 2012. A Lei
da Ficha Limpa é movida pelo melhor propósito de purificação da vida
democrática. Acho a opinião pública muito importante, mas, para nós, a
Constituição é um santuário sagrado.

O Judiciário não demora demais em responder a essas demandas?
Entra em cena outra questão, que é a judicialização da política. Aqui não
há a judicialização da política: há a politização de questões levadas ao
Judiciário. Por que não resolveram isso lá entre as próprias instituições?
Como a Constituição garante que todo cidadão lesado pode entrar na
Justiça, todos os que se sentiram prejudicados pela lei entraram em juízo.
Passam pela primeira instância, TRE, TSE e ainda cabe recurso ao STF. Sou
defensor da eliminação do número de recursos. É preciso que a população se
satisfaça.

O sr. pode ficar quase 13 anos no STF. Pretende sair antes?
Aí a gente vai ter que valer da frase de que o futuro a Deus pertence.
Acho que é uma ideia legítima você contribuir com seu país por dez anos e
depois você permitir que outros possam ocupar.

A divisão desse julgamento tende a se repetir?
Mesmo os magistrados mais experientes têm um grau de intelectualidade
muito avançado, não merecem a pecha de conservadores. O voto do ministro
Gilmar Mendes é baseado em doutrinas recentes. Não tem grupo nem deve se
imaginar isso. Até porque o STF visa a fazer Justiça à luz da lei e da
Constituição. Não é um tribunal de justiçamento.

O STF tem pela frente casos polêmicos, como a extradição de Cesare
Battisti. Qual sua posição sobre o caso?
Uma tese sub judice não pode ser adiantada sob pena de criar um paradoxo e
eu ficar impedido de julgar.

A extradição virou disputa entre a questão política e o entendimento do
tribunal?
A questão que se vai colocar é: se o ato do presidente é vinculado à
decisão do Supremo ou é um ato discricionário. Tem sistemas jurídicos de
todos os gostos. Tem o que avalia apenas se estão presentes as condições
de extradição. A discussão é saber qual é o sistema brasileiro. É aquele
que entende que o Judiciário só avalia e tem que cumprir, ou o Judiciário
é impositivo, e cabe apenas ao presidente cumprir? Vai depender do teor da
decisão.

Há na pauta outros casos de repercussão social, como a união homoafetiva.
Como o sr. se posiciona nesses casos?
No Supremo, você aplica regra bíblica de a cada dia uma agonia. Por
exemplo, a Lei da Ficha Limpa foi incluída na sexta à noite na pauta.
Essas coisas são divulgadas muito em cima da hora.

Mas o sr. nesse ponto também pretende ser estritamente técnico?
Julgo sempre segundo minha consciência, e acho que estou fazendo o melhor.
Sou humano. Se errar, vou errar pelo entendimento. Sou sensível aos
direitos fundamentais da pessoa humana.

Outra polêmica posta é sobre os limites do CNJ. O sr. acha que o ministro
Peluso adotou uma postura mais corporativista que a anterior?
O ministro Peluso é um juiz de carreira que exerce a presidência. E não
tem a história de um homem corporativista. Ele só não vai permitir a
condenação de uma pessoa em bases infundadas.

Qual o sr. acha que deve ser o limite de atuação do CNJ?
O CNJ foi uma grande inovação quanto ao controle externo, mas tem tido
questionamentos quanto à atuação, de desvios da função. É o que temos de
analisar.

Neste ano ou no próximo os srs. vão se deparar com o maior julgamento da
história do STF, que é o do mensalão. O sr. acha que o Supremo é a corte
adequada para julgar questões penais?
Juiz tem de julgar de tudo. Outro questionamento, o da prerrogativa de
foro, tem um pressuposto correto, porque o ente público, dependendo da
função que exerça, está sempre sendo questionado. Não seria razoável ele
ser julgado cada hora num lugar.

Mas existe o outro lado dessa questão, que é o fato de o Supremo demorar
demais para se manifestar em questões penais. Até hoje há apenas três
casos de condenação.
Isso é uma realidade inafastável. Mas hoje o fato de você ter juízes para
produzir provas, fazer a oitiva de testemunhas, agiliza muito. Pelo
tamanho do processo, o ministro Joaquim Barbosa está tendo uma presteza
enorme.

Em 2007, quando o STF decidiu receber a denúncia do mensalão, o ministro
Ricardo Lewandowski fez um desabafo dizendo que a corte julgou "com a faca
no pescoço". No julgamento, a pressão deve voltar. Como equilibrar isso?
Acha que eu não julguei a Ficha Limpa com a faca no pescoço? Acho que os
ministros vão se equilibrar no fio dessa navalha no seguinte sentido: o
processo penal determina que seja apurada a autoria e a materialidade.
Esse é o papel do STF. Discussão política é inaceitável

Nota a respeito do julgamento "Ficha limpa"

O julgamento da denominada "Lei da ficha limpa" foi histórico no STF e o resultado é por todos conhecido após o esperado voto do Min. Fux. Não vou, neste momento pelo menos, detalhar comentários sobre os argumentos dos ministros, mas ressaltar apenas dois pontos que tenho visto pouco nos debates e me parecem obrigatórios por revelarem aspectos de nossa má-prática republicana e democrática:

1. O voto do Min. Fux em nenhum momento poderia ser aceito como surpresa, ao menos pelos instituições políticas ou pela sociedade civil organizada. Por circunstâncias históricas, após o empate da votação no ano passado, o 11º ministro a ser escolhido ainda, é quem deveria dar o voto decisivo. Não lhes soa razoável que a indicação, portanto, tenha sido centrada na posição do indicado sobre o seu primeiro e, talvez, mais importante voto? E a sabatina no Senado que, tradicionalmente entre nós consiste em um protocolo de saudação e discursos laudatórios, demonstrando uma subserviência ao executivo comparável apenas ao dominato romano? Não deveria este ter sido o tema principal e mais polêmico da arguição? Não deveria ter consumido mais tempo que a leitura do currículo do indicado ou sua comovente percepção sobre o mister do judiciário em uma sociedade democrática?

Caganifâncias, isso sim, luas novas e solenidades, na fortíssima e intimorata acusação do profeta Isaías. Tratou-se de uma celebração de uma decisão já dada desde a escolha e não de surpresa. E se houvesse, de fato, alguma polêmica política a respeito, ela deveria ter-se mostrado no Senado onde essa indicação poderia ter sido uma das mais questionadas e combatidas da nossa história recente, mas como todas as outras, atravessou sem provocar nenhuma marola...Quero deixar claro o ponto: não estou fazendo qualquer juízo sobre o caráter, as intenções ou a competência do novo Min. Fux. A bem da verdade, creio mesmo que ele possui mais credenciais para o cargo que o penúltimo ministro a ter assumido, o Min.Toffoli. Minha questão é de que essa indicação, diversamente das demais da nossa história mais recente, deu-se diretamente em razão de um voto pendente, mas ainda assim a sociedade civil não se envolveu partindo do pressuposto, talvez, de que a garantia da autonomia do magistrado e seu livre convencimento deixariam o jogo ainda por decidir, ao passo de que ele já estava decidido antes da sabatina iniciar.

2. O processo do "ficha limpa" revelou-se, desde a votação do ano passado, como mais um desdobramento do fenômeno maior da judicialização da política, que é a judicialização da própria judicialização. Ou seja, se os processos judiciais contra os mandatários políticos fluíssem com regularidade e houvesse condenações contra eles neste país, a exigência do "Ficha limpa" não faria sentido algum, ao revés, nos pareceria nociva e mal-intencionada. Ela somente nos representa uma possibilidade real de maior lisura no processo eleitoral em face de políticos já marcados por acusações graves e repletas de provas, mas que correm pelos tribunais há décadas aguardando as prescrições, como ocorreu recentemente com o Sr.Paulo Maluf. Há os processos, mas não as decisões. O processo não significa uma limitação, um prejuízo, um julgamento. Por isso o "ficha limpa", portanto, para obter alguma restrição, para impor um limite que o judiciário brasileiro não tem sido capaz de fazer valer. A nossa necessidade da "Lei da ficha limpa" é uma demonstração dos vícios antirepublicanos e antidemocráticos do próprio judiciário, pois se permite utilizar não para julgar, mas para proteger outros de julgamento. A sociedade, portanto, buscou legitimamente encontrar outro caminho. O julgamento no STF é também uma avaliação dessa contradição provocada na tensão do jogo político regular e a ineficiência do judiciário como instância de controle dos elementos de legalidade desse mesmo jogo. O que conclui o Min. Fux não é, em si próprio, inadmissível -longe disso. O que nos é inadmissível são as consequências, quando a decisão reabilita o agora Sen.Jader Barbalho, por exemplo.

Pois bem, o julgamento concluiu pela validade da referida lei para 2012 e, entre mortos e feridos, tudo acabará bem, afinal, na linguagem shakespeareana bom é o que bem acaba?

Não. O problema central que mencionei agora é que se revelará com mais intensidade e poderá invalidá-la por inteiro. Enquanto a polêmica estava concentrada em toda sua atenção na validade da lei para agora ou para depois, resumindo-se a um problema de direito intertemporal, aprofundou-se pouco a questão das condenações em segundo grau ou transitadas em julgado.

Esse, no meu juízo, é o problema real e que revela nossa verdadeira mazela antirepublicana. Essa é a razão de judicializar-se a própria judicialização da política e acredito que sua conclusão acabará por inviabilizar a eficácia da "Lei da ficha limpa" mesmo para 2012. Isso porque a Lei procura dar conta de problemas que não se iniciam, nem se desenvolvem no seu âmbito de aplicação social, mas por dentro dos canais do poder que é responsável por dizer se ela valerá ou não.

A "Lei da ficha limpa" acusa um problema histórico do judiciário brasileiro e ele a deixará falar ou a calará por definitivo?

domingo, 27 de março de 2011

Considerações acerca de uma história preterintencional (3)

PARTE FINAL
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3. Preterintencionalidade em Immanuel Kant.

                   Kant é um iluminista bastante representativo daquele movimento cultural. Encontram-se em sua obra os traços tão caros aos historiadores ao caracterizarem tal momento histórico, como as idéias de civilização e progresso, a problematização da historicidade, a assunção do um mundo da cultura e do homo faber, e a audácia do pensamento crítico que Kant afirma com precisão ao responder à pergunta "Was ist Aufklärung?": "Esclarecimento é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem"[1] .

                   Assim, Kant assume um elemento característico do pensamento iluminista que consiste na conversão dos dilemas que anteriormente eram tratados no plano da transcendência para o da imanência.

                   Também a razão pragmática de que fala CALAZANS : "A razão é instrumento de mudança: o primeiro passo é mudar o próprio modo de pensar"[1] , é elemento presente na concepção de razão que Kant propõe. Agora, no entanto, a principal preocupação desse notável pensador tenha sido talvez a de sistematizar uma doutrina para compreensão do modo pelo qual se deva dar a atuação dessa razão no mundo, seja numa dimensão epistemológica - como podemos conhecer? - seja numa dimensão ética - como o homem deve atuar no mundo de forma que sua ação possua um conteúdo moral?.

                   O paradigma naturalista do iluminismo encontra em Kant um pouso seguro. No tratamento que seu raciocínio sistematizador confere à história está presente a profunda convicção de que sendo         a natureza humana uma só em cada qual, onde o velho dístico sofista "o homem é a medida de todas as coisas" assume outro significado, qual seja o de que a mente humana possui a mesma essencialidade estrutural, a história sendo humana deve assumir essa racionalidade de espécie. Assim, por mais que individualmente considerado o valor de uma boa vontade seja absoluto -"Nem no mundo, nem, em geral, tampouco fora do mundo, é possível pensar algo que possa considerar-se como bom sem restrição, a menos que seja tão somente uma boa vontade"[1]- as ações humanas consideradas na espécie parecem seguir uma racionalidade própria independente da intenção dos sujeitos tratados de per si. Aí é que reside precisamente a razão natural, i.e., no plano da imanência centrada no espírito humano genérico.

                   Não será outra a motivação de Kant ao iniciar a Idéia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita pela consideração de que sob uma ótica metafísica, qualquer que seja "o conceito que se faça de liberdade da vontade, as suas manifestações (Erscheinungen) - as ações humanas -, como todo outro acontecimento natural, são determinadas por leis naturais universais"[1].

                   Esse é o princípio que o avanço da ciência estatística permite inferir com clareza hoje em dia e já apontado por Kant àquela época: de que por mais que individualmente os acontecimentos sejam-nos sempre singulares, eles repetem-se com uma certa margem de regularidade na sociedade considerada com um todo orgânico. Assim os números de casamentos, a taxa de mortalidade e natalidade, os quadros endêmicos e epidêmicos nos quais se baseiam as companhias de seguro e os planos de saúde etc., quando se está diante de um painel estável de evolução social. Para Kant, essas seriam as pistas definitivas de que os indivíduos ainda que persigam um seu particular propósito seguem inconscientemente uma destinação superior da natureza, inscrita na própria espécie e subliminarmente em cada qual. Daí fácil é a ilação de que, se identificada essa destinação, o fio condutor da história inscrito na natureza na forma de suas leis, o homem teria um critério imbatível de verificação de progresso ou regresso na sua evolução histórica. É a que se propõe o texto sob análise.

                   Kant elenca a partir desse ponto uma série de proposições que revelam nitidamente a direção otimista do progresso humano fundada na racionalidade da natureza. Dessa maneira: "Todas as disposições naturais de uma criatura estão destinadas a se desenvolver completamente e conforme um fim"[1], sendo que a principal conclusão desta proposição é que o que haja de física ou organicamente inútil no homem é contra a natureza e tende, por isso a desaparecer         .

                   Na segunda proposição Kant revela a criação primordial talvez do século das "luzes", que é a consciência paroxística de que o homo faber construiu o seu lugar natural, seu locus, que é o mundo da cultura. Os homens transmitem-se conhecimentos através das gerações e elevam progressivamente, portanto a compreensão do próprio homem e da sua sociedade. Essa é uma decorrência necessária da idéia de que a racionalidade natural não se destina a criar coisas inúteis e de que os esforços humanos inseridos nessa racionalidade igualmente não podem ser inúteis, caso contrário não passariam de "um jogo infantil".

                   Na terceira proposição Kant funda na razão e liberdade da vontade (lembre-se de que foi leitor entusiasta de Rousseau - o que distingue o homem do animal é mais a vontade livre), a sabedoria da natureza para com o homem, do qual ela parece querer extrair o lavor e o aprimoramento, como se a ele quisesse dizer que "se ele se elevasse um dia por meio de seu trabalho da máxima rudeza à máxima destreza e à perfeição interna do modo de pensar e (tanto quanto é possível na terra), mediante disso, à felicidade, ter o mérito exclusivo disso e fosse grato somente a si mesmo - como se ela apontasse mais para a auto-estima racional do que para o bem-estar"[1], o que soa muitíssimo semelhante ao belíssimo e surpreendentemente ilustrativo texto de Pico Della Mirandolla à época, de todos conhecido, chamado Oratio de hominis dignitate.

                   Na quarta proposição encontra-se a idéia de Kant que, no texto em epígrafe possui ao nosso entender, um caráter de enorme sensibilidade intelectual, no que Kant supera sem dificuldades a percepção preconceituosa mesmo de um Rousseau quanto às diferenças que a sociedade introduz entre os homens, ao comércio e à livre circulação de bens. Para Kant, o homem segrega um forte paradoxo: ao mesmo tempo que possui uma inclinação para associar-se, possui na mesma proporção um ímpeto para separar-se, tendências que já eram classicamente apontadas pelos autores iluministas ou pré-iluministas. A novidade está em que Kant não vê nisso qualquer disfunção, ao contrário, faz destacar que é essa oposição que permite ao homem o progresso social. Por ele mesmo: "Esta oposição é a que, despertando todas as forças do homem, o leva a superar sua tendência à preguiça e, movido pela busca de projeção (Ehrsucht), pela ânsia de dominação (Herrschucht) ou pela cobiça (Habsucht), a proporcionar-se uma posição entre companheiros que ele não atura, mas dos quais não pode prescindir. Dão-se então os primeiros verdadeiros  passos que levarão da rudeza à cultura, que consiste propriamente no valor social do homem(...) os homens, de tão boa índole quanto às ovelhas que apascentam, mal proporcionam à sua existência um valor mais alto do que o de seus animais; eles não preencheriam o vazio da criação em vista de seu fim como natureza racional"[1].

                   Saltando as outras proposições intermediárias, por prestarem-se mais a outras discussões que não essa presente, citaremos por fim a oitava que diz respeito ao fim da história como Kant a entende. Assim, é que a idéia de progresso e racionalidade da história centrada na racionalidade da natureza humana, que por isso mesmo torna as intenções individualmente consideradas preterintencionais, acabam por cumprir com a caminho ou trilha que a natureza a espécie humana destinou. É na investigação intelectual do curso até então percorrido pela humanidade que Kant identifica "o plano oculto da natureza para estabelecer uma constituição política". E por mais que a história do homem não tenha tido o condão da indicar com precisão qual esse arcano natural, algumas pistas são verdadeiramente palpáveis para Kant, e uma delas é que a liberdade civil não mais poderia ser desrespeitada nos Estados da época sem que todo o mais fosse irreparavelmente afetado. A cultura absorveu de tal maneira a idéia e o costume da liberdade que não seria possível a vida social sem ela, a não ser a duros custos para os Estados e os cidadãos. E é essa a grande descoberta de evolução cultural: algumas conquistas civis são irreversíveis de tal maneira que os custos para um Estado que descure desses avanços determinam como que um seu nec plus ultra . Essa é a idéia de um progresso e o sentido do otimismo que está em Kant: as coisas evoluíram e nada indica que deixarão de evoluir cada vez mais e com substanciais melhoras para a vida social. Para o nosso ponto cabe destacar insistentemente que essas evoluções são avaliáveis historicamente, num plano em que não é considerada a intenção individual, mas tão somente os resultados fatuais instalados no devir da humanidade.


Referências bibliográficas:

[1] CALAZANS FALCON, Francisco J. Iluminismo, Ed.Ática, São Paulo, 1986: pg.35.
[1] SMITH, Adam. A riqueza das Nações. Ed.Nova Cultural -Os economistas-, São Paulo, 1996:73.
[1] Discurso sobre a origem da desigualdade..., Ed.Nova Cultural, col.Os pensadores, pg.218.
[1] id.ibidem, pg.247.
[1] id.ibidem, pg.249.
[1] id.ibidem, pg.272.
[1] Carta de J.J.Rousseau ao Sr.Philopolis, ob.cit., pg.321.
[1] KANT, I. in TEXTOS SELETOS, 2 ed., Vozes, Petrópolis, 1985, pg.100.
[1] ob.cit., pg.37.
[1] Fundamentos da Metafísica dos costumes. Ed.Tecnoprint, trad.Lourival Henkel: pg.37.
[1] Idéia..., Ed.brasiliense, trad. Ricardo Terra: 09.
[1] Ob.cit., pg.11.
[1] ob.cit., pg.12.
[1] ob.cit., pg.14/ grifo nosso.

quarta-feira, 23 de março de 2011

Considerações acerca de uma história preterintencional.

(PARTE DOIS DE TRÊS)
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2. Preterintencionalidade em Rousseau.

                   Em Rousseau a história da humanidade assume um aspecto curioso, sendo o curso de sua própria decadência numa proporção direta ao seu progresso, ou por outras palavras, quanto mais o homem progride na sociedade mais ele decai moralmente. A arquitetura rousseauniana é assim a reconstituição no campo da filosofia moral e política do mito da queda de Adão do paraíso, tal como nos conta o livro do Gênese.

                   Sua obra maior na exposição dessa teoria é, sem dúvida, o Discurso sobre a origem e os fundamento da desigualdade entre os homens, escrito para responder à pergunta de mesmo teor lançada pela Academia de Dijon e publicado pela primeira vez em 1754, obtendo de imediato grande repercussão, inobstante ter sido preterida na Academia  pela obra do Pe.Talbert, hoje esquecido completamente. De acordo com Paul-Arbousse Bastide em comentários preliminares ao Discurso: "Em dois pontos especiais a repercussão do discurso foi considerável: a) Rousseau instaurou, definitivamente, na literatura o mito do selvagem livre, feliz, robusto e puro, a superioridade da vida simples na natureza em oposição à vida doentia das cidades civilizadas; b) voltou a dar forma à doutrina da igualdade, ao ideal de vida comunitária, que foi o dos espartanos e dos primeiros cristãos".[1]

                   Mas um ponto que precisa ser destacado em Rousseau e que já foi objeto de muita má interpretação, inclusive por seus contemporâneos como Voltaire, e que ele não é um defensor do retorno ao estado de natureza, um civilizado bucólico que desejava não meditar por vergonha de sua depravação. A leitura de sua obra de maneira alguma autoriza essa interpretação, ainda mesmo que nos deixemos surpreender pelas passagens mais radicais do Discurso: "...as fadigas e o esgotamento do espírito, as tristezas e os trabalhos sem-número pelos quais se passa em todos os estados e pelos quais as almas são perpetuamente corroídas - são, todos, indícios funestos de que a maioria de nossos males é obra nossa e que teríamos evitado quase todos se tivéssemos conservado a maneira simples, uniforme e solitária de viver prescrita pela natureza. Se ela nos destinou a sermos são, ouso quase assegurar que o estado de reflexão é um estado contrário à natureza e que o homem que medita é um animal depravado"[1]. Obviamente, essa depravação a qual Rousseau refere-se e que tamanha pândega provocou é apenas uma instigação àqueles que não compreendem que o conhecimento não torna o homem melhor por si próprio. Se ele for incapaz de fazê-los entender que as imensas desigualdades das sociedades da época desafiam a arrogância da filosofia pura, meramente metafísica, tal sabedoria de muito pouco vale, e é aí que a obra rousseauniana impregna-se do pragmatismo iluminista, que via nas idéias um instrumento de intervenção e transformação da sociedade, o que tanto empolgaria um Kant ao avaliar o alcance da Revolução francesa e levaria o próprio Rousseau a redigir seus projetos de constituição. Mas ao mesmo tempo, é o teor de uma idéia como essa que torna Rousseau um pensador desviante no contexto do iluminismo, pois a razão e o conhecimento que dela pode advir apenas podem trazer ao homem as "muletas" para uma decrepitude moral que teria sido evitada se o estado de natureza não houvera sido defenestrado.

                   Rousseau é um argumentador exaltado no mais das vezes, e diga-se de passagem, um excelente debatedor. Seu argumento é feito para chocar, deliberadamente eu direi, provocando controvérsia e arrebatação, que é e sempre foi a melhor forma de conseguir atenção sobre uma obra. Agora, seu pensamento não se esgota aí, ele é bem mais elaborado. Se ele afirma que a sociedade civil é corrupta, no sentido radical da palavra, é porque centra na bondade original da natureza humana a razão central para sua tese revolucionária e, assim, ele recria para o âmbito político a velha escatologia religiosa do bem vs. Mal, na qual aquele deve sempre prevalecer.

                   Mas decorre da leitura do Discurso que o estado de natureza não pode subsistir, pois está na própria natureza humana o germe evolutivo que inevitavelmente  conduzirá a sua superação, queira o homem ou não. Os resultados das ações humanas, as circunstâncias em que os homens encontram-se e precisam de cada qual para contornar problemas eventuais como a alimentação, a satisfação do desiderato natural de reprodução da espécie, dentre outras coisas obrigam o homem a sair de seu individualismo original, que por mais que fosse bom por ser um estágio de igualdade, era insustentável. Daí que o homem, diferentemente dos animais, que passam milhares de anos sem apresentar nenhuma mudança no seu modo de vida original, é o único animal que possui a capacidade de tornar-se imbecil[1].

                   O estado de natureza fixa, portanto, fundamento do argumento individualista de Rousseau, sendo que enquanto o homem precisou apenas de si próprio para manter-se totalmente, todos foram iguais. A inexistência de linguagem, os conúbios eventuais (pois o amor moral é invenção da sociedade civil), sendo  necessidades circunstanciais, impediam que fosse possível no estado de natureza qualquer progresso. Rousseau destila todos seus argumentos contra aqueles filósofos que vêem no estado natural elementos e paixões que apenas a sociedade pode criar. Assim, a passagem desse estágio foi preterintencional, isto é, o conjunto das ações circunstanciais e isoladas dos homens foi progressivamente gerando novas necessidades e as ações para satisfazer àquelas foram gerando outras e assim sucessivamente. Ilustrativamente: "Desde que se tornaram necessários homens para fundir e forjar o ferro, precisou-se de outros para alimentar a estes. Na medida em que se multiplicou o número de trabalhadores, menos mãos houve para atender à subsistência comum, sem que com isso houvesse menos bocas para consumi-las, e, como uns precisam de comestíveis em troca do ferro, outros por fim encontraram o segredo de empregar o ferro na multiplicação dos comestíveis. Nasceram assim, de um lado, a lavoura e a agricultura e, de outro, a arte de preparar os metais e multiplicar-lhes o emprego"[1].                
                   Essas investigações de Rousseau dão-se bem ao gosto difundido na época de fazer a reconstrução da história a partir da introspecção, consoante o dístico "conhece-te a ti mesmo" que simboliza a tendência bem presente no filósofo iluminista de trazer para a imanência, por sob a tutela do homem, elementos que antes se continham na esfera do pensamento teológico de maneira absoluta. Tal característica é que irá permitir ao iluminismo investir-se de um pensamento crítico radical, atacando dogmas, avançando por campos outrora vedados à investigação (apesar desse ser sempre um limite desrespeitado pelos mais ousados pensadores), problematizando e autonomizando os diversos campos em que a ciências dividiam-se. E é dessa maneira que Rousseau reconstrói um paradigma naturalista e irá reconhecer no homem uma propensão ao bem, o que somente é exercitável na sociedade civil, pois o homem selvagem não é bom, nem mau, senão simplesmente indiferente; do ponto de vista ético ele é amoral. Mas há nele uma natural tendência a fazer o bem fundada na piedade ou compaixão instintiva que ele sente com relação aos outros animais, inclusive aos de sua própria espécie. É sobre essa natural inclinação que deverá exercer forte influência a pedagogia rousseauniana, como arte de desenvolver o conjunto das potencialidades da criança a quem a ignorância iguala ao ingênuo selvagem.

                   Portanto, ao nosso entender, Rousseau encararia a proposição de Ferguson como acertada e não há outra alternativa, senão esta, pois se a história para Rousseau fosse produto das intenções das ações humanas e delas tendo resultado a decadência que o progresso trouxe, a corrupção do espírito humano e seu aprisionamento, então o homem não seria bom originalmente, ou melhor dizendo, não apresentaria de fato tal propensão para a bondade. Para Rousseau a degradação que o homem provocou ao dividir as tarefas, ao estabelecer a propriedade sobre o que produzia e ao aderir a um contrato que protegia tais desvios da igualdade original, foi acidental, fruto de uma evolução natural, posto "que na minha opinião a sociedade é tão natural para a espécie humana como a decrepitude para o indivíduo e de que aos poucos são necessárias as artes, as leis e os governos, como as muletas o são para os velhos. A diferença toda está em que o estado de velhice decorre unicamente da natureza do homem e o da sociedade decorre da natureza do gênero humano, não imediatamente como quereis, mas unicamente, como o provei, graças ao auxílio de certas circunstâncias exteriores que podem acontecer ou não, ou, pelo menos, acontecer mais cedo ou mais tarde e, consequentemente, apressar ou retardar o progresso"[1].

                   Então, se deve entender que a intenção da ação do homem não dá conta do que realmente importa na evolução histórica, mas as razões centradas no gênero humano, i.e., a humanidade, é que têm o condão de provocar este ou aquele dado caminho para a história. No caso de Rousseau, a humanidade depravou-se por conta das circunstâncias históricas que ele reconstrói por ficção, mas não por isso menos plausível, em que a necessidade e a imprevisibilidade do homem primitivo engendram, tal como citamos anteriormente.

terça-feira, 22 de março de 2011

"Sou Ari Pargendler, Presidente do STJ, e você está demitido!"

Esse exemplo do nosso republicanismo de bacharéis veio do Blog do Noblat. Que tal?
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"A frase acima revela parte da humilhação vivida por um estagiário do Superior Tribunal de Justiça (STJ) após um momento de fúria do presidente da Corte, Ari Pargendler (na foto).
O episódio foi registrado na 5a delegacia da Polícia Civil do Distrito Federal às 21h05 de ontem, quinta-feira (20). O boletim de ocorrência (BO) que tem como motivo “injúria real”, recebeu o número 5019/10. Ele é assinado pelo delegado Laércio Rossetto.
O blog procurou o presidente do STJ, mas foi informado pela assessoria do Tribunal que ele estava no Rio Grande do Sul e que não seria possível entrevistá-lo por telefone.
O autor do BO e alvo da demissão: Marco Paulo dos Santos, 24 anos, até então estagiário do curso de administração na Coordenadoria de Pagamento do STJ.
O motivo da demissão?
Marco estava imediatamente atrás do presidente do Tribunal no momento em que o ministro usava um caixa rápido, localizado no interior da Corte.
A explosão do presidente do STJ ocorreu na tarde da última terça-feira (19) quando fazia uma transação em uma das máquinas do Banco do Brasil.
No mesmo momento, Marco se encaminhou a outro caixa - próximo de Pargendler - para depositar um cheque de uma colega de trabalho.
Ao ver uma mensagem de erro na tela da máquina, o estagiário foi informado por um funcionário da agência, que o único caixa disponível para depósito era exatamente o que o ministro estava usando.
Segundo Marco, ele deslocou-se até a linha marcada no chão, atrás do ministro, local indicado para o próximo cliente.
Incomodado com a proximidade de Marco, Pargendler teria disparado: “Você quer sair daqui porque estou fazendo uma transação pessoal."
Marco: “Mas estou atrás da linha de espera”.
O ministro: “Sai daqui. Vai fazer o que você tem quer fazer em outro lugar”.
Marco tentou explicar ao ministro que o único caixa para depósito disponível era aquele e que por isso aguardaria no local.
Diante da resposta, Pargendler perdeu a calma e disse: “Sou Ari Pargendler, presidente do STJ, e você está demitido, está fora daqui”.
Até o anúncio do ministro, Marco diz que não sabia quem ele era.
Fabiane Cadete, estudante do nono semestre de Direito do Instituto de Educação Superior de Brasília, uma das testemunhas citadas no boletim de ocorrência, confirmou ao blog o que Marco disse ter ouvido do ministro. 
“Ele [Ari Pargendler] ficou olhando para o lado e para o outro e começou a gritar com o rapaz.  Avançou sobre ele e puxou várias vezes o crachá que ele carregava no pescoço. E disse: "Você já era! Você já era! Você já era!”, conta Fabiane.
“Fiquei horrorizada. Foi uma violência gratuita”, acrescentou.
Segundo Fabiane, no momento em que o ministro partiu para cima de Marco disposto a arrancar seu crachá, ele não reagiu. “O menino ficou parado, não teve reação nenhuma”.
De acordo com colegas de trabalho de Marco, apenas uma hora depois do episódio, a carta de dispensa estava em cima da mesa do chefe do setor onde ele trabalhava.
Demitido, Marco ainda foi informado por funcionários da Seção de Movimentação de Pessoas do Tribunal, responsável pela contratação de estagiários, para ficar tranqüilo porque “nada constaria a respeito do ocorrido nos registros funcionais”.
O delegado Laercio Rossetto disse ao blog que o caso será encaminhado ao Supremo Tribunal Federal (STF) porque a Polícia Civil não tem “competência legal” para investigar ocorrências que envolvam ministros sujeitos a foro privilegiado."
Pargendler é presidente do STJ desde o último dia três de agosto. Tem 63 anos, é gaúcho de Passo Fundo e integra o tribunal desde 1995. Foi também ministro do Tribunal Superior Eleitoral." 

segunda-feira, 21 de março de 2011

Considerações acerca de uma história preterintencional.

(PARTE UM DE TRÊS)

                   O iluminismo como realidade presente e atual no mundo ocidental por certo não deve essa posição a um despropósito. Uma parte considerável dos conceitos que hoje possui o homem ocidental, sua visão da ciência e da história, a relação entre ciência  e fé, sentimento e racionalidade, a sua idéia de progresso, citados enumerativamente apenas dentre outras coisas, são se não criados pelo movimento do setecentos ao menos por ele profundamente influenciados.

                   O iluminismo ou ilustração (enlightenment, aufklärung, lumière), conforme a preferência, foi um movimento cuja tônica era a secularização de dogmas, a assunção do homem a uma posição de sujeito no processo de criação. Era uma audácia - Sapere Aude! - que importava na ruptura com uma série de preconceitos de ordem religiosa ou sentimental. Cabe observar nessa altura, que longe de ser um movimento uniforme e compacto, como uma maré, ou tendo acontecido no meio de uma "terra de ninguém", o iluminismo teve sua preparação, em deve também ser entendido como a culminação de um processo que possuiu suas raízes, dentre outras, no seio da própria intelligentsia da Igreja. A esse respeito cumpre citar FRANCISCO CALAZANS em esclarecedor trabalho: "Do século XVI ao século XVIII, desenvolveram-se duas linhas de reflexão tendentes em ambos os casos, a reconhecer a realidade secular. A primeira, no plano da política, tem seus marcos mais significativos em Maquiavel, Bodin, Hobbes e Locke, mas é preciso não esquecer a importância de certos textos de Tomás de Aquino (sec.XIII) e, sobretudo, de Roberto Belarmino (sec.XVI), nos quais desponta uma visão cristã da secularização cuja essência é o reconhecimento da autonomia e da legitimidade da esfera própria do entendimento humano, assim como da realidade intramundana do homem e da vida, ou seja, do natural (...) A segunda linha, muito vinculada  às vicissitudes inglesas do seicentos, tem em Herbert de Cherbury (1588-1648) e nos platônicos de Cambridge como Henry More, os expoentes de uma tendência que busca conciliar a ciência com os valores espirituais, pois, para eles e muitos outros, 'a razão é a luz, o candelabro do senhor'. Pensavam,  assim, que era possível conciliar razão e revelação, fazendo da Revelação presente na Bíblia apenas o começo histórico de uma revelação a ser adquirida por intermédio da razão" [1].

                   Mas importa notar que a noção de historicidade foi obra dos iluministas, partindo do suposto sentido da evolução histórica criou-se o problema da história. É assim que Voltaire se refere então a uma "filosofia da história", crendo na possibilidade de analisá-la por sobre a sucessão cronológica dos fatos e identificar um sentido para sua evolução na cultura dos homens, no "caldo comum da civilização". Deve-se compreender daí que se há um sentido para os fatos encadeados no tempo esse mesmo sentido não pode escapar da razão humana, pela simples constatação de que a história é um dado humano. A recuperação do devir do plano transcendente para a imanência obrigatoriamente o preenche de uma nova lógica, assentada desta feita na própria razão dos homens.

                   Essa perspectiva imanente e racional confere à história no contexto da maioria dos pensadores iluministas uma idéia otimista quanto ao porvir. Os progressos da técnica, da medicina e das demais ciências e a noção estabelecida de que o homem pode dar conta de sua própria evolução pelo primado racional, concedem ao filósofo iluminista a impressão segura de que tudo o que haja de miséria no mundo pode ser extirpado, contanto que seja descoberta a sua razão. Isso porque nada é injustificável no mundo, pois o mal é fruto do erro. O mundo ainda que possua todas as misérias que se conhecem é para o iluminista o "melhor dos mundos possíveis", feito justamente para ocupar o lugar que ocupa. Mas ao contrário da objeção equivocada do anônimo Philópolis a Rousseau, essa não é uma constatação que tenda à resignação, mas precisamente à intervenção da razão humana sobre os erros para que os corrija. Esse é o melhor dos mundos possíveis, mas nem tudo está bem; uma coisa não exclui a outra.

                   É na problematização da história que o iluminista reconhece que se o homem pode ser seu sujeito ao mesmo tempo é seu objeto. Que a história mesmo que possa ser influenciada, e efetivamente o é, pela intenção dos atos humanos não é por eles produzida. A história para o iluminismo possui sua própria racionalidade que cabe ao homem descobrir e a ela adequar-se na medida em que sua inteligência a isso conduza. E aí está um dos aspectos da "iluminação": ser o filósofo aquele que através da razão pode lobrigar a essência racional do devir histórico e com isso esclarecer os governantes e os povos. A ausência dessa concepção racional é que permitiu aos iluministas lançar os tempos pretéritos nas trevas, juntamente com a ascensão de uma ideologia ( com a licença da expressão) pragmática da filosofia, com o qual se armaram mormente os novos cientistas da época.

                   Dentro de uma compreensão preterintencional da história no iluminismo deve-se mencionar também que as análises historiográficas da época passaram a assumir um caráter sincrônico, em oposição às leituras da história por através de um único elemento ou fator. Aí tem-se um Montesquieu, que talvez seja o exemplo mais ilustrativo de uma tentativa de construção de um método globalizante de estudo histórico e cultural. Assim, sendo a evolução histórica resultado de um conjunto múltiplo de fatores, complexificando o seu estudo, o homem isoladamente considerado apenas pode influir pontualmente na sua evolução, sendo desprezível a consideração da intenção nessa avaliação. Por mais que as ações humanas sejam movidas por intenções que devem ser, na medida do possível, avaliadas, a razão histórica delas não faz caso, coordenando as ações de acordo com a sua própria lógica. Cabe, entretanto, advertir que essa lógica não está, obviamente, contida num ente a que denominar-se-ia história. O iluminista não cria essa perspectiva de uma outra transcendência a partir do fruto de sua própria elaboração. A razão histórica está assentada na natureza humana, que como tal revela-se pela suas ações. É assim que ADAM SMITH adverte n'A Riqueza das Nações, ao tratar da divisão do tabalho, tema que retomaremos adiante: "Essa divisão do trabalho, da qual derivam tantas vantagens, não é, em sua origem, o efeito de uma sabedoria humana qualquer, que preveria e visaria esta riqueza geral à qual dá origem . Ela é uma consequência necessária, embora muito lenta e gradual, de uma certa tendência ou propensão existente na natureza humana que não tem em vista esta utilidade extensa, ou seja: a propensão a intercambiar, permutar ou trocar uma coisa pela outra" [1]

                   Assim, seria perfeitamente aceitável uma tal idéia de descobrir-se uma teleologia ou sentido da história se para tanto pudesse-se compreender os princípios da natureza humana, já que é ela quem dita a racionalidade histórica. O homem passa dessa maneira a não representar importância tão somente um indivíduo, mas a transpor-se para um plano de humanidade, pois para o filósofo iluminista o que importa verdadeiramente é a compreensão da natureza humana que para eles é una e igual em todos os homens. O homem é mortal, mas não o é a humanidade. A história é, portanto preterintencional na proporção em que descura das intenções individuais e resulta de uma "intenção maior", que lhe suplante e vá além, qual seja a da própria humanidade, inscrita nos papiros da natureza humana, cujos hieróglifos somente os filósofos iluminados podem decifrar.

domingo, 20 de março de 2011

Ditaduras e a justiça de transição

Agradeço ao Prof. Dr. José Ribas Vieira a notícia


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EL PAIS 

TIMOTHY GARTON ASH 20/03/2011

Nos guste o no, Alemania sigue siendo la referencia mundial en materia de
maldad política. Hitler es el Diablo de una Europa laica. El nazismo y el
Holocausto son comparaciones que utiliza la gente en todas partes. La Ley
de Godwin, así llamada por el abogado estadounidense Mike Godwin, defensor
de la libertad de expresión, afirma que "a medida que se prolonga un
debate en la Red, la probabilidad de que haya una referencia o una
comparación con Hitler o los nazis se aproxima a 1".

Una rápida purga administrativa puede ser más eficaz que unos juicios
selectivos

No estaría mal que Egipto pidiera consejo sobre la mejor manera de abrir
sus archivos
Es una realidad con la que los alemanes actuales tienen que vivir. Pero
existe otra cara de la moneda que es más brillante. Porque la experiencia
de lidiar con dos dictaduras, una fascista y otra comunista, ha permitido
que Alemania sea también el punto de referencia sobre cómo abordar un
pasado difícil. El alemán moderno utiliza dos palabras,
Geschichtsaufarbeitung y Vergangenheitsbewältigung, para describir este
complejo proceso de abordar, desentrañar e incluso "vencer" un pasado
difícil. Algo que nadie ha hecho mejor que Alemania, con aptitudes y
métodos desarrollados para enfrentarse al pasado nazi y perfeccionados
después con el legado de la Stasi. Así como se emplean normas alemanas
para evaluar muchos productos industriales, las famosas normas DIN,
existen también unas normas DIN para superar el pasado.

Ahora, los países árabes, que luchan para salir de años de oscuridad bajo
sus dictadores, pueden aprender de Alemania. Además de un aspecto tan
importante como la restitución y la compensación a las víctimas, la
superación del pasado, en general, tiene tres facetas fundamentales:
juicios, purgas y lecciones de historia.

Nuestras ideas actuales sobre la necesidad de someter a juicio a los
responsables de "crímenes contra la humanidad" se remontan a los juicios
de los dirigentes nazis en Núremberg. Pero, aunque Núremberg sentó un
precedente crucial, tuvo dos grandes fallos: los "crímenes contra la
humanidad" por los que se juzgó a los acusados no eran delitos de derecho
internacional en el momento de cometerlos, y entre los jueces hubo
representantes de la Unión Soviética, a su vez culpable de crímenes contra
la humanidad durante el mismo periodo. Se podría acusar a Núremberg de
haber sido una justicia de vencedores, selectiva y con efectos
retroactivos.

Por suerte, el Tribunal Penal Internacional que tenemos hoy, y ante el que
pueden comparecer los dirigentes árabes, evita en gran medida esos fallos.
Las leyes internacionales están firmemente establecidas y este es un
tribunal creado como es debido, aunque es una vergüenza que todavía no
cuente con la participación de Estados Unidos, China ni Rusia.

Si los juicios internacionales son complicados, los que se llevan a cabo
con arreglo a leyes y jurisdicciones nacionales pueden serlo todavía más.
Y ese es un aspecto en el que Alemania no lo ha hecho mejor que los demás.
Los juicios de los exdirigentes de Alemania del Este como Erich Honecker,
dejaron mucho que desear y con frecuencia acabaron en fracaso. Dado que en
casi todos los regímenes totalitarios o autoritarios hay muchas personas
cómplices, lo normal es que se produzcan contradicciones. O castigamos a
los peces pequeños y dejamos que se marchen algunos peces gordos, o damos
un castigo ejemplar a unos cuantos peces gordos pero dejamos a otros, y a
los tiburones más pequeños, en libertad.

El mes pasado, tres esbirros del régimen de Mubarak -el magnate del acero
Ahmed Ezz y los exministros de Vivienda y Turismo- llegaron a un juzgado
de El Cairo, en medio de una lluvia de piedras, para comparecer por
acusaciones de corrupción. No me cabe duda de que eran muy corruptos,
¿pero más que algunos de los generales que los estaban sacrificando como
ofrendas a una multitud indignada?

En circunstancias así, una rápida purga administrativa puede ser más
eficaz, e incluso más justa, que unos juicios selectivos que se convierten
en espectáculo. Consiste en que el país que está saliendo de una dictadura
decide que hay algunas personas tan involucradas en las barbaridades del
viejo régimen que dejar que sigan en activo en cargos importantes pone en
peligro el nuevo orden. Estas medidas también tienen precedentes en
Alemania. La "desbaazificación" de Irak y la "descomunistización" de
Europa del Este tras 1989 se inspiraron en la "desnazificación" a partir
de 1945. Pero la desnazificación también fue selectiva, y se interrumpió
de forma brusca cuando Alemania Occidental se convirtió en Estado
independiente en 1949.

Un ejemplo mejor es quizá la investigación sistemática de los vínculos de
los funcionarios con la Stasi, la policía secreta de Alemania del Este.
Tras la unificación alemana en 1990, se creó un ministerio para examinar
los archivos de la Stasi. La gente lo llamaba "la autoridad Gauck", por su
primer responsable, Joachim Gauck. En mi opinión, quisieron abarcar
demasiado. ¿De verdad había que investigar si cada cartero se había
relacionado con la policía secreta? Pero el procedimiento en sí era
riguroso, justo y apelable.

Alemania es excelente en lo que yo llamo las lecciones de historia.
Después de un periodo de callar y reprimir el pasado nazi en los años
cincuenta y primeros sesenta, Alemania Occidental empezó a investigar,
documentar y enseñar con toda minuciosidad su difícil historia. Y la
Alemania unida demostró que había aprendido las lecciones y lo hizo aún
mejor con el legado comunista oriental. Se formó una comisión de la
verdad, llamada Enquete Kommission. Se abrieron los archivos de la Stasi;
se hicieron estudios; se aprendieron lecciones.

También la "autoridad Gauck" fue fundamental en esta clase magistral de
cómo superar el pasado, porque permitió que cualquiera que se hubiese
visto perjudicado por las acciones de la Stasi, tuviera acceso a los
expedientes. Hasta ahora, ha recibido nada menos que 2,7 millones de
solicitudes de particulares para obtener o leer información de los
archivos. Esta semana nombraron al tercer responsable del organismo,
Roland Jahn, otro antiguo disidente de Alemania del Este. Por tanto, ahora
ha pasado a ser la "autoridad Jahn". Se dice que tal vez no se cierre en
2019, como estaba previsto, sino que es posible que prolongue su
actividad.

Como es natural, resulta muy improbable que ningún país árabe salido de la
dictadura haga algo semejante, ni en dimensión ni en calidad. Aparte de la
cultura legal, académica, periodística y administrativa tan desarrollada
que se necesita para sostener un ministerio de los archivos como el de
Alemania, es además un procedimiento muy caro. Los jóvenes árabes en paro
y sin vivienda pueden pensar que sus Gobiernos tienen cosas más urgentes
en las que gastar el dinero. Ahora bien, una vez decidido el cierre de su
temido Servicio de Seguridad del Estado, no estaría mal, tal vez, que
Egipto pida a Joachim Glauck que vaya a aconsejarles cuál es la mejor
forma de abrir sus archivos.

Hay que ser precavidos. En las últimas semanas he oído decir muchas veces
a europeos bien intencionados, pero demasiado satisfechos de sí mismos que
"tenemos una rica experiencia de transiciones de la dictadura a la
democracia y debemos ofrecérsela a nuestros amigos árabes".

Lo primero es escuchar a quienes están allí, en el norte de África y
Oriente Próximo. Es posible que sus prioridades y necesidades sean
diferentes. Y una lección que nos enseñaron las transiciones de Europa del
Este tras la caída del comunismo en 1989 es que no se puede aplicar un
modelo occidental como si tal cosa. El mismo error que se cometió cuando
Alemania Occidental, a menudo tan inflexible, incorporó Alemania del Este.

Por consiguiente, lo que debemos ofrecer a nuestros amigos de la otra
orilla del Mediterráneo no es un modelo, sino unas herramientas. Unas
herramientas entre las que ellos puedan escoger cuáles utilizar, cuándo,
dónde y cómo. Entre esas herramientas para la transición debe haber, sin
duda, un juego de llaves inglesas relucientes, que son las normas DIN para
superar el pasado. Y esas llaves inglesas, como tantas otras exportaciones
europeas, llevarán el letrero made in Germany.

Traducción de María Luisa Rodríguez Tapia.

Timothy Garton Ash es catedrático de Estudios Europeos en la Universidad
de Oxford, investigador titular en la Hoover Institution de la Universidad
de Stanford.