segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

La ruta de Brasil hacia la verdad y la Justicia

02/12/11
En la última semana dos importantes actividades en Buenos Aires debatieron los procesos de justicia de transición en el Cono Sur. Representando a Brasil, invitado por el Instituto de Políticas Públicas en Derechos Humanos del MERCOSUR y Memoria Abierta, pude percibir una duda casi universal entre los participantes de otros países: si la dictadura acabó en 1985, ¿por qué recién ahora se aprueba una Comisión de la Verdad? Para comprender el “por qué” del “ahora”, es necesario verificar la diferencia del proceso de Brasil con los de otros países de la región, en especial Argentina y Chile.
Nuestra dictadura fue extremadamente “legalizada”. El sistema judicial adhirió casi por completo al régimen. Esto produjo dos efectos: por un lado, un numero de víctimas fatales mucho menor, una vez que es más difícil hacer “desaparecer” a alguien que ingresa formalmente en el sistema de justicia. Por otro lado, hubo en Brasil una represión mucho más extendida, que penetró en diversas instituciones del Estado, no solamente con la represión directa sobre las personas (como la tortura), sino también con la estigmatización, el despido del trabajo, la expulsión de la universidad, el exilio y la clandestinidad.
Esta diferencia, sumada a una amplia adhesión de la sociedad a la amnistía de 1979, que incorporaba la idea de ser “bilateral”, tuvo consecuencias. La demanda de los familiares de los muertos y desaparecidos repercutió, en un primer momento, con menos fuerza en la agenda política de la transición que la de los sobrevivientes.
De esta manera, el eje estructurante del proceso no fue “verdad, memoria y justicia” sino “reparación, memoria y verdad”.
Para designar reparaciones y desagravios, Brasil creó dos Comisiones. Una en 1995, que trabajó hasta 2007 y reconoció 475 personas muertas y desaparecidas. La otra en 2001, que reconoció más de 36 mil casos de prisión política, exilio, tortura, y otras violaciones a los derechos humanos, que sigue en funcionamiento hasta hoy. A partir del reconocimiento público de estas violaciones surgió una demanda amplia por verdad y memoria que no afecta sólo a las víctimas sino a la sociedad en su conjunto.
El régimen negaba la práctica de violaciones y solamente con su reconocimiento y reparación es que fue posible para amplios sectores sociales percibir la gravedad de lo sucedido.
Este proceso gradual de reconocimiento tardío de la verdad es, justamente, lo que explica el “por qué solamente ahora”.
Siendo así, ¿cuáles son las perspectivas y desafíos hoy en Brasil? En primer lugar, la Comisión de la Verdad tiene poderes para investigar la autoría (institucional y personal) de los hechos que ya fueron reconocidos. También podrá registrar un relato bien fundamentado que permita a todos conocer el pasado y superar la actitud de negación.
Finalmente, podrá proponer reformas institucionales con el objetivo de eliminar del Estado resquicios autoritarios, impidiendo su repetición. Así la verdad contribuye a la afirmación de la justicia. Muchos preguntan ¿algún día tendremos justicia penal en Brasil? Es difícil decirlo, pero todo el proceso brasileño hoy parece mucho más próximo del chileno, con su atribución de responsabilidades limitada, que del argentino, con su amplia agenda de juicios. Solamente el tiempo nos permitirá saberlo.

domingo, 6 de novembro de 2011

O LEITO DE PROCRUSTO


Friedrich Dürrenmatt

Na localidade de Coridalos viviam muitos gigantes e homens crescidos normais. Disso decorria que os homens maiores, os gigantes, subjugavam os homens menores. Como Coridalos ficava na região da Ática, soprou até lá um hálito de razão vindo de Atenas, inspirando o gigante Polípemo, que era particularmente grande, a pensar. Durante várias semanas ele andou pensativo pela paisagem, refletindo sobre a desigualdade dos homens. Depois ele se nomeou Procrusto, o esticador, e construiu duas camas, uma para os gigantes e outra para os não-gigantes. Na cama para os não-gigantes ele colocava os gigantes e lhe cortava as pernas, de modo que eles coubessem na cama dos não-gigantes. Os não-gigantes, ele colocava na cama dos gigantes e os esticava, até que estes se adequassem à cama.
Palas Atena, de cujo hálito soprou o ar da razão até Coridalos, sentiu-se responsável e dirigiu-se a Procrusto. Ela lhe perguntou o que fazia.
"Estou agindo de acordo com a tua razão, deusa", respondeu o gigante, "cujo hálito colocou em movimento o meu pensar. Eu comecei a refletir sobre a desigualdade dos homens. Ela é injusta. Eu me dei conta pouco a pouco de que a justiça exige que todos os homens sejam iguais. Isto é razoável. Há em Coridalos gigantes e não-gigantes. sendo que os primeiros subjugam os segundos. Os homens são aqui desiguais de dois modos: em seu ser e em seu fazer. Isto não é razoável. Ora, se eu tornasse apenas os gigantes em não-gigantes, cortando-lhes as pernas, eu teria produzido com isso, todavia, uma nova injustiça: não-gigantes aleijados e não-gigantes, sendo que nesse caso estes últimos submeteriam os gigantes que se tornaram aleijados. Também irrazoável. Mas se eu agisse contra os não-gigantes, se eu os esticasse ao tamanho dos gigantes aleijados, eu teria produzido uma nova injustiça: tal como os gigantes aleijados, eles estão tão entregues aos gigantes quanto os não-gigantes. Outra vez irrazoável. Assim sendo,a meu ver, só há uma possibilidade de estabelecer a igualdade de todos os homens: os gigantes têm o direito de ser não-gigantes, e os não-gigantes de ser gigantes. Eu estou agindo de acordo com isso. Eu corto as pernas dos gigantes, eles se tornam tão pequenos quanto os não-gigantes. Quanto aos não-gigantes, eu os estico até ficarem do tamanho dos gigantes. Tal operação torna ambos iguais, pois através dela ambos se tornam aleijados. E se eles morrem em conseqüência da operação, eles também são iguais entre si, pois a morte torna todos iguais. isto não é razoável?"
Balançando a cabeça negativamente, Palas Atena retornou a Atenas. A argumentação de Procrusto a fez perder as palavras. Foi a primeira vez que ela, como deusa, ouviu um discurso ideológico, e ela não encontrou nenhuma réplica. Procrusto, em virtude do silêncio da deusa, convenceu-se da correção de suas deduções, e voltou a torturar. Àqueles que torturava, ele sempre esclarecia que o fazia em nome da justiça: ora, um gigante tem o direito de ser um não-gigante e vice-versa. A localidade de Coridalos tornou-se um inferno, repleta dos gritos dos martirizados, que podiam ser ouvidos em toda a Grécia. Os deuses, embaraçados, tapavam os ouvidos com as mãos. Eles também não encontravam nenhuma réplica à argumentação de Procrusto. As pragas, em especial, eram horríveis de se ouvir. Por isso, eles desligavam o som dos televisores - como deuses eles estavam tecnicamente bem à frente dos homens - para não mais ouvir as preces e os pedidos de socorro, bem como a gritaria e as maldições de Coridalos, razão pela qual eles nada mais ouviam do resto da terra. Todavia, isso fez com que eles não mais interviessem na história.
E assim, então, gigantes e não-gigantes amaldiçoavam Procrusto, enquanto ele os torturava, e os aleijados gigantes e não-gigantes o amaldiçoavam também. Saíam maldições até mesmo do túmulo daqueles que não haviam passado pelo procedimento bárbaro. Mas visto que Procrusto não compreendia porque ele estava sendo amaldiçoado - pois ele se sentia um benfeitor e era em geral um gigante muito sensível -, ele imaginou que o problema estava em seu método, adquirindo especialmente para as suas camas bons colchões. Desse modo, enquanto os coridalianos gritavam incessantemente e amaldiçoavam, ele tentava acalmar os torturados de um outro modo, já que eles não haviam sido iluminados pela razão divina como ele. Ele dizia para as suas vítimas que era heróico sofrer cada um em sua cama específica, fabricada de árvores que cresciam em todo o país - uma razão não menos irracional, porém, agora uma razão patriótica para as suas torturas.
E realmente, desta vez alguns gigantes e não-gigantes se colocavam como voluntários aqui. No geral, as maldições foram diminuindo com o tempo. Por encontrarem motivos para a ação de Procrusto, eles também encontravam consolo para tanto sofrimento. Houve até gigantes aleijados e não-gigantes aleijados que se convenceram de que haviam sido torturados para um futuro melhor. Por causa disso, pelo menos a chegada de Procrusto não era mais amaldiçoada, pois, com o tempo, as gigantes, através de uma adaptação evolucionária, passaram a dar à luz aleijados não-gigantes e as não-gigantes, a aleijados gigantes, de modo que Procrusto, no geral, não precisou mais torturar. Outros contentavam-se em morrer desse modo, desde que assim, esperavam eles, no futuro não houvesse mais nenhuma tortura.
Em virtude das razões apresentadas, os torturados eram levados a suportar a tortura, mesmo sendo ela irracional. Só alguns poucos gigantes e não-gigantes torturados insistiam depois que a cama de tortura e a tortura fossem inutilizadas. Isso era o que Procrusto mais odiava. Ele ainda se revoltava com o fato de as pessoas não entenderem que ele não torturava por prazer, mas sim por uma necessidade histórica. Tendo em vista que, a fim de não mais ouvir as queixas e gritarias, ele sempre imaginava motivos para torturar, ele acreditava que, com o tempo, a história só podia ter um sentido se ela progredia, e se tal progresso consistisse em que ela é sempre mais justa, e ela só é mais justa se, a partir da desigualdade dos homens, ela se desenvolve em direção à igualdade deles.
Enquanto isso, o jovem Teseu caminhou de Tróia para Atenas, para lá se tornar rei, como filho de Egeu. Visto que ele concebia a política desde um ponto de vista prático novo, ele também veio a Coridalos. Lá ele ouviu e se admirou da Ideologia de Procrusto.
"Tu precisas admitir que eu estou agindo de maneira razoável", disse Procrusto, orgulhoso, "a própria Palas Atenas não sabia me replicar".
"Tu ages tão irrazoavelmente quanto Pitiocampto, o podador de abetos, quando ele corta o andarilho em dois, e os inserta nos troncos de dois abetos tortos e então os deixa crescer", respondeu Teseu. "A única diferença entre Pitiocampto e tu consiste em que ele não imaginou que devesse cortar em nome da justiça dos homens. Ele o fazia pelo puro prazer da crueldade".
"Pitiocampto é meu filho", disse Procrusto, pensativamente.
"Eu o matei", respondeu Teseu, tranquilamente.
"Agiste corretamente", disse Procrusto, depois de longo pensar, "embora Pitiocampto fosse meu filho. Não é permitido matar pelo puro prazer da crueldade".
Assim, enquanto Procrusto queria cumprimentar Teseu agradecido, este jogou o gigante com tal força na pequena cama que a terra estremeceu.
"Seu louco", ele disse, e abateu Procrusto, que lhe encarava com os grande olhos, admirado. "Você foi retirado do hálito da razão muito cedo. As pessoas não são iguais, mesmo se não houvesse gigantes e não-gigantes, mas só gigantes, ou só não-gigantes. E porque as pessoas não são iguais, algumas maiores, outras menores, cada gigante tem o direito de ser um gigante, e cada não-gigante de ser um não-gigante. Ambos são iguais apenas perante a lei. Se tu tivesses introduzido esta lei, terias evitado que os gigantes dominassem os não-gigantes, ou, o que poderia bem ser o caso, que fossem os gigantes prejudicados pelos não-gigantes. Com isso, você teria poupado seus conterrâneos dessa tortura absurda".
E, assim, Teseu primeiramente cortou as pernas de Procrusto e, porque este já era especialmente um gigante grande, cortou-lhe também a cabeça, que ainda murmurava ao ser decepada:
"Eu só estava sendo justo". E então a cabeça ainda disse, enquanto ainda estava em cima do pescoço, antes que os grandes olhos se fechassem: "Eu jamais fizera mal algum aos homens".
Depois disso, Teseu caminhou de volta a Atenas para junto de seu pai Egeu. Infelizmente, Teseu era não apenas um herói; ele era também esquecido. Ele se esquecera, quando estava com Procrusto, que não matara apenas o seu filho Pitiocampto, mas sim também engravidara a sua neta, Periguna. Ele simplesmente se esqueceu de tudo. Seu lenço estava cheio de nós, era inútil. Ao regressar de Creta, ele esqueceu Ariadne na ilha de Naxo, que lhe salvara do labirinto, e assim esqueceu de levantar a vela branca, de modo que o seu pai atirou-se ao mar, porque ele pensou que Teseu fora morto pelo Minotauro no labirinto. Por causa disso, Teseu tornou-se rei. Infelizmente, ele também esquecera do seu inteligente discurso a Procrusto: não que ele fora particularmente um mal rei - ele está, de fato, bem colocado na escala dos reis -, mas abaixo dele nem todos eram iguais perante a lei, alguns mais iguais que outros. Isto porque Teseu também era esquecido como marido: seus amores, escreve Robert de Ranke-Graves, colocaram tantas vezes os atenienses em apuros que eles reconheceram seu verdadeiro valor apenas gerações após a sua morte.
in Engelmann, B. & Jens, W. (1982): Klassenlektüre, Hamburg: Albrecht Knaus Verlag, pgs. 96-99. Tradução de Marco Antonio Frangiotti e Celso Braida

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

O leite, a escola e o corrupto

Nestes poucos meses de blog ainda não havia postado nenhum texto específico sobre política e também, nenhum vídeo. Entretanto, assisti ainda a pouco, enviado por um amigo, esse discurso breve, mas contundente de denúncia em tom de desabafo e revolta da Dep. Estadual Cidinha Campos do Rio de Janeiro, proferido em meio a uma sessão da ALERJ. Há constangimento ao redor, risadas e escárnio que podemos presumir na atitude de vários dos deputados ao redor. Mas há sobretudo, uma ruptura nítida, ainda que em um momento pequeno, um certo torpor e tensão provocada pela desorientação, resultado daquilo que é inesperado, que sai diferente do que acontece todos os dias.

A fúria indignada da Deputada não deveria nos impressionar, mas impressiona. Porque os bons estão, em regra, calados.

Eu aplaudi interiormente as palavras incontidas da Deputada e fiquei imaginando como seria se em cada ambiente dessas Assembléias Estaduais, sempre tão silenciosas e penumbrosas para quem está de fora, vez por outra, se ouvisse um grito sincero de pudor. Bastaria isso, um verdadeiro pudor republicano que de tão raro, hoje nos parece estranho...


http://www.youtube.com/watch?v=q21rM03_R18

Deputada Cidinha Campos - ALERJ

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Direito arcaico e transição para o direito das altas culturas


Resenha do Cap. 3 do livro "Sociologia do Direito", v.I, de Niklas Luhmann, realizada pelo monitor Diego Vale, a quem parabenizo pela leitura precisa do texto e por esta colaboração.
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O direito arcaico

            A primeira ressalva importante que Luhmann faz nesta parte do texto é que as categorias que ele exporá a seguir não devem ser compreendidas em um sentido cronológico-objetivo. Quer dizer que o desenvolvimento das sociedades não se dá em um mesmo momento e que não nos encontramos totalmente distanciados daquele tipo segmentário de diferenciação social. Sempre se afastando da ingênua noção de progresso, Luhmann afirma que este princípio ainda permanece em boa parte das relações sociais e algumas sociedades contemporâneas ainda podem ser classificadas como segmentárias caso apresentem as características necessárias.
            Desta maneira, aponta-se como primeira característica das sociedades arcaicas uma estrutura fundamentada no parentesco. Os critérios de organização destas sociedades sempre baseiam-se em noções auto-evidentes, de simples percepção, como, além do parentesco, o sexo ou a idade. Organizam-se sob o binômio parente/não-parente, que faz com que elas apresentem complexidade relativamente reduzida.
            Neste sentido, as principais características do direito arcaico seriam: a aplicação imediata do direito, sem qualquer tipo de procedimento instrumental, o que gera pouca variação e alta concretude nas resoluções dos conflitos; e a pobreza em alternativas. O direito da tribo ou família é tido como o único possível em oposição aos outros sistemas sociais. A concretude dos casos faz com que a vigência autônoma do direito se torne desnecessária, além de não permitir a transferência de normas para casos diferentes. O talismã (o formalismo) se limita a fazer referência ao caso presente e não se amplia a situações análogas. Trata-se de um direito que não faz nem referência ao passado, nem muito menos planeja o futuro, estatuindo normas que servirão para futuros julgados.
Dessa maneira, o desvio inovador é estruturalmente insuportável, pois a sua rejeição é intuitivamente vista como imediata. É por isso que há baixa pressão seletiva – ou baixa pressure to make selections – e, logo, baixa complexidade.
Sobre o formalismo é preciso atentar para alguns detalhes. A visão de mundo das sociedades arcaicas não é restrita por causa das concepções sagradas e tradicionais. A sacralização e a tradição “arcaicas” não podem ser a única explicação para um direito também arcaico. Aliás, é mais verossímil a hipótese inversa – que a ausência de alternativas provoque a sacralização. A deficiência de acolhimento de novas possibilidades existiria mesmo sem o sagrado e este surge como representação deste vazio em alternativas. Não são os referenciais sagrados e tradicionais que determinam o direito, mas o contrário – eles são símbolos da impossibilidade de mudança.
            O ritualismo e o formalismo exercem a função de transmissão dos elementos constantes do direito arcaico até o direito das altas culturas. As concepções causais mágicas – isto é, o gesto ou a palavra certa – acionavam o direito de maneira direta. Esta ativação, contudo, não é vista de maneira mecânica, como na causalidade física (historicamente posterior a estes arcaicos momentos). O gesto ou a palavra são vistos como indissolúveis ao próprio fenômeno jurídico, como qualidades inerentes ao próprio evento, de modo que se a expectativa não se cumpre, sua causa é imputada a outras razões - aqui, a aparência é o próprio sentido. Este não se diferencia da forma.
            O próprio critério de vigência do direito se baseia na estrutura social do parentesco. Luhmann aponta para comprovações da pressão que concepções como o respeito e a obediência aos antepassados exercem sobre as normas jurídicas.
            Nesse sentido, a imposição das normas jurídicas não tem tanta importância quanto a manutenção das próprias expectativas (não seria possível conceber a criação de uma polícia para a proteção do direito). É por isso que, no direito arcaico, cada ofendido é juiz em sua própria causa, e o direito se confunde com a moral, com os costumes e outros sistemas sociais. Sem a reação do atingido, não seria possível diferenciar as expectativas que deveriam se acomodar às frustrações e aquelas que deveriam ser mantidas.
Os princípios de generalização congruente de expectativas comportamentais são principalmente a represália e a reciprocidade – a primeira muito mais influente que a segunda. São chamados por Luhmann de motivos conceptuais, uma vez que, muito embora não houvesse uma concepção de justiça prévia ao próprio direito, as concepções jurídicas posteriores sempre lhe fazem referência. A represália clama pela concretização da situação certa – pela vingança - independentemente do tempo, pois vinganças se perpetram através das gerações. Por sua vez, a reciprocidade é o fundamento de instituições tais como o dever de agradecimento, da dependência ao se aceitar favores e da entrega obrigatória de excedentes. Trata-se de uma função de compensação de necessidades.
O Talião é a institucionalização da represália, limitador da abrangência da vingança. O problema da falta de especificação dos deveres de reciprocidade, contudo, acarreta no perigo da insolência (hybris, noção grega) e conduz aos pontos de estagnação ou estrangulamento do direito arcaico.

A transição para o direito das altas culturas

            O sistema jurídico acima descrito torna-se particularmente problemático na medida em que alguns fatores dos sistemas sociais passam por modificações em suas estruturas e por aumentos de complexidade. As penas da vingança e do Talião passam a causar mais prejuízo do que benefício à sociedade mesmo diante de suas limitações posteriormente inseridas, da justificativa de sua gravidade embasada em explicações sobrenaturais e da possibilidade de sua substituição por penas de natureza menos grave.
A flagrante violência do sistema ainda é bastante incômoda principalmente no âmbito econômico. As mudanças advindas do desenvolvimento econômico e da consequente passagem ao cultívo agrícola lançam olhares de reprovação à lógica taliônica. A força imediata não faz mais tanto sentido para o camponês, que pretende acumular riquezas, quanto para os caçadores. Este é apenas um exemplo dentre muitos das modificações trazidas pela economia monetária, que inaugura uma série de disputas jurídicas entre pessoas de diferentes classes sociais que precisam ser solucionadas. Em substituição à vingança de sangue, um sistema de composições, antes improvável, torna-se predominante.
Nas sociedades arcaicas, os mecanismos jurídicos de resolução de conflitos encontram-se vinculados a outros sistemas sociais (principalmente à religião, mas também às famílias). Na passagem para as sociedades das altas culturas, ocorre um fenômeno da autonomização do direito – ele se tornará gradualmente especializado em apenas uma função. Como pressuposto desse fenômeno, é preciso que surja um mecanismo social de diferenciação entre o status de pessoas e de grupos de pessoas, que conduzirá a uma forma particular de dominação política.
Esta, por sua vez, descola-se de uma fundamentação relacionada ao parentesco e também autonomiza-se, tendo como base uma instância mágico-religiosa abstratamente superior ao parentesco. Institui-se uma instância decisória nova, independente das partes e capaz de se impor a elas ao exarar decisões vinculativas.
Como auxiliar desse processo de concentração do poder decisório, é preciso citar o ritualismo e o formalismo. Nesses mecanismos rígidos, diante dos quais uma palavra ou gesto errado transforma a justiça imediatamente em injustiça, deposita-se a função de resolver casos aparentemente insolúveis e, portanto, de neutralizar as formas jurídicas frente aos papéis sociais. O formalismo, longe de ser apenas um fenômeno irracional, tem o mérito de ser o principal fator de autonomização do direito em relação aos outros sistemas sociais. Ele também torna o direito capaz de ser transmitido através das gerações e o destaca das estruturas de parentesco. Contudo, são imprescindíveis apenas na medida em que cumprem esta função, tornando-se dispensáveis a partir de quando as estruturas de dominação política já estiverem adequadamente configuradas.
Enfim, Luhmann afirma que Max Weber estava certo quando supôs que a razão da necessidade dessas mudanças jurídicas adveio de conflitos sobre propriedade, status, poder político e da economia monetária que não podiam mais ser resolvidos nas formas antigas de resolução de controvérsias.

O direito das altas culturas

            Luhmann começa por afirmar que são poucas as sociedades que atingem este estágio de desenvolvimento – e que, dentre elas, apenas duas (o direito do continente europeu e o direito anglo-saxão) serão capazes de preparar o campo para se chegar ao estágio seguinte do processo de desenvolvimento. Surgem aqui centros funcionais, isto é, instituições com funções específicas, como templos cuja função não é mais apenas interpretar fatos, mas a própria religião ou mercados que distribuem suprimentos não mais apenas entre parentes. No entanto, estes momentos são vistos pela vida cotidiana como situações excepcionais, pois ainda subsistem as famílias e os modos tradicionais de relacionamento social. Mais ou menos “escondidos” dos olhares das pessoas comuns, estes centros funcionais apresentam um desempenho bastante superior em suas respectivas funções: na obtenção e distribuição de alimento, no negócio e na realização de trocas, etc.
            É preciso ter como pressuposto desta passagem a fundação da cidade, ou seja, a criação de uma unidade ou identidade superior às aldeias ou famílias. A noção grega de polis é muito cara a esta passagem, pois enxerga a ordem política não como apenas a imposição de decisões, mas sim como a dominação independentemente das relações de parentesco. Para isso, passa-se a enxergar o homem desvinculado de suas condições de nascimento, como um ser humano nascido em uma situação ideal de igualdade em relação a seus semelhantes. Desse modo, o parentesco não é mais a principal estrutura social. Evidentemente, é necessária também a concentração da realização de atividades específicas voltadas ao melhor desempenho de uma função, de modo a possibilitar que outros homens exerçam em caráter exclusivo (ou pelo menos majoritário) a função jurídica, por exemplo. Sem que houvesse essa especialização funcional, mesmo que parcial, os homens ainda estariam preocupados com a sua própria subsistência, voltando sua atenção para atividades primárias como a caça e a coleta de alimentos. Todavia, com a agricultura e o cultivo de alimentos em geral oriundos da sedentarização, os homens dispõem de mais tempo para se dedicar a outros tipos de atividade, como as de cunho jurídico. Esta configuração política e social é imprescindível ao desenvolvimento do direito. É somente sobre este solo que poderá crescer um novo direito – ele é a própria condição de possibilidade do florescimento de culturas jurídicas que se baseiam em jogos linguísticos sobre conceitos estritamente jurídicos.
A dominação política não seria de qualquer forma possível se a estrutura social permanecesse ainda sob a lógica do parentesco. A própria constituição desse esquema de decisões vinculativas emanadas de um terceiro e do processo é uma conquista evolutiva pouco provável – não é uma “unidade natural”, isto é, não surgiu de maneira necessária e inevitável da evolução social. Mesmo não sendo auto-evidente, ao fim de um longo e paulatino processo de maturação ele se estabiliza no direito das altas culturas, tornando-se bem sucedido como unidade emanadora de decisões vinculativas. Isto não seria pensável em uma sociedade cuja estrutura se baseasse no parentesco: é só a partir de quando os homens passam a se ver como semelhantes, unidos por um vínculo superior à família que a centralização do poder se realiza. A continuidade da vida em comum torna-se mais importante que o culto dos antepassados – a sociedade prevalece sobre as unidades familiares.
É dentro deste contexto social já consideravelmente complexo que aparece o processo decisório de caráter exclusivamente jurídico. O procedimento judicial, que surge a partir do momento em que as expectativas normativas do direito já se encontram devidamente diferenciadas das outras expectativas, é uma conquista evolutiva de maior importância para Luhmann. Como já visto, isto não seria possível caso a dominação política não se encontrasse apropriadamente desatrelada de outras funções sociais como o parentesco. A dominação política não serve à função jurídica apenas por lhe dar a força física (a imposição). Ela é relevante principalmente por proporcionar a autonomização do direito através do processo. A incerteza do resultado da contenda, que substitui a incerteza decorrente do duelo e do “julgamento divino” presentes nas formas arcaicas de resolução de conflitos, é a essência do processo – o terceiro mais poderoso que as partes deverá sempre ser imparcial e nunca cederá às pressões externas (a colère publique de Durkheim). Não menos relevantes, contudo, são a especialidade do processo ante outros sistemas de interação e a neutralização do juiz – estes são mecanismos processuais voltados a evitar a influência de fatores externos ou condições pessoais (papéis sociais) sobre a decisão. Assim, para o autor, uma maneira de medir o desenvolvimento de determinada sociedade é proceder à análise de seu sistema processual. O processo é o termômetro do desenvolvimento social porque pode-se medir a complexidade de uma determinada sociedade a partir da concretização dos pressupostos processuais delineados acima.
O curioso em meio a essa transição de concepções jurídico-morais subjetivas para concepções objetivas exclusivamente jurídicas é que o juiz, em seu ofício, deve se apresentar de forma imparcial e desinteressado e ao mesmo tempo sustentar as expectativas de sua decisão. Somente quando a decisão assume por si só o papel de direito é que essas noções morais ou dos costumes deverão ser abandonadas ou excluídas do direito. É por essa razão que surgem conceitos jurídicos notadamente mais técnicos e que nada ou muito pouco tem a ver com as noções morais ou do senso comum. Cria-se uma cultura jurídica sem qualquer vínculo com noções pré-jurídicas e uma linguagem de manuseio privativo dos iniciados na arte do direito. Isto possibilita que o direito, em busca dos ideais de imparcialidade do juiz, ignore as condições pessoais dos litigantes e do próprio juiz ao propor suas decisões e se desatrele cada vez mais de noções concretas, podendo atuar inclusive de maneira especulativa. A norma jurídica não deve mais reverência aos fatos, podendo se ajustar a situações hipotéticas.  Essa cultura jurídica denomina-se até os dias de hoje de dogmática jurídica ou ciência do direito. Novamente, nada disso seria possível em sociedades cujas necessidades primárias não estivessem muito bem atendidas – se os homens estivessem sempre preocupados com suas refeições, por exemplo.
            Luhmann aponta como outra conquista evolutiva a diferenciação hierárquica na sociedade, que pode ser explicada a partir de uma abordagem da teoria dos corpos. Os povos incluídos neste grau de desenvolvimento cultural possuem a noção de que a sociedade funciona tal como o corpo humano. Assim como os seus órgãos, os indivíduos também possuiriam diferentes funções, cada uma correspondente a um grau distinto de prestígio. No entanto, esta ordem era vista como imutável, uma vez que, tal como no corpo humano, se um dos órgãos – por mais reles que seja sua função – não exerce um desempenho adequado, todo o conjunto estaria sujeito ao falecimento. Esta diferenciação de papéis era vista com tanta seriedade que sequer faziam sentido brincadeiras como pedir a um camponês que ele imaginasse o que faria se ele fosse rei. Apesar disso, é impensável às estruturas dessas sociedades uma multiplicidade de hierarquias simultâneas, de modo que quem dominava deveria possuir ao mesmo tempo uma série de outras virtudes – deveria ser o mais rico também, além de o mais sábio, etc.
Estas são características fundamentais desta etapa do direito: a gradual abstração faz com que o direito ultrapasse lógicas mais concretas como as oposições entre bom e mal e permitido e proibido e utilize critérios mais específicos de vigência do direito. O direito aqui afirma-se mais pela sua vigência, sua validade – ou seja, por critérios criados por si mesmo – do que pela sua eficácia, isto é, a resposta imediata à frustração. Ele passa existir a partir de uma vigência contrafática, ideal e constante.
No entanto, o direito não é visto, quer pelos juristas como pelos outros atores sociais, como originário de ato opcional, de uma escolha. Muito embora as contendas particulares possam ser resolvidas por um processo decisório, a existência do direito como um todo não poderia ainda ser concebida como advinda por si mesma de um processo decisório. Por isso, as bases do direito parecem imutáveis, ainda mais quando devidamente institucionalizadas pela legislação, mesmo que este tipo de sociedade comumente vislumbre possibilidades de alteração. Graças à interação intensificada entre as diversas sociedades, é possível visualizar o condicionamento histórico e social das instituições jurídicas. Mesmo assumindo este ponto, ainda é impossível a estas culturas compreender o direito como um fenômeno arbitrariamente concebido pelos poderes políticos. A obediência do direito também ainda tem a ver com algo a mais do que a mera vontade ou coerção.
É assim que a própria ordem da natureza é compreendida em termos jurídico-morais. Ser e dever-ser, expectativas cognitivas e normativas podem até se diferenciar, mas sua fonte é a mesma – ambas as ordens das coisas são geradas pelo mesmo criador -, e é por isso que há tanta relutância em aceitar o direito como surgido de um processo decisório, legislativo ou não. Historicamente surgem as idéias sobre o direito natural em oposição ao direito positivo, vigente. Sua provável origem é encontrada nas aspirações de reforma das estruturas antigas de poder e de distribuição de riquezas. Neste sentido o direito natural seria anterior às ordens vigentes e constituiria o próprio critério de validade das normas jurídicas. Uma norma jurídica válida não deve ainda assim ser obedecida caso seja injusta. É daí que surgem algumas noções iluministas como a desobediência civil: toda ordem do rei para ser obedecida tem que ser válida, mas não só: deve também ser justa. Segundo Luhmann, a noção de justiça é cunhada também a partir daqueles motivos conceptuais da reciprocidade e da represália do direito arcaico, adaptados de modo a corresponder às reivindicações de uma sociedade mais complexa. É dessa forma que um princípio eminentemente moral se torna relevante para o direito – se não fosse internalizado pelo direito como pressuposto para a obediência permaneceria apenas uma virtude. O direito natural é, portanto, um conjunto de noções sobre a justiça que subordina as ordens jurídicas positivas de modo a adaptá-las de acordo com suas exigências.
Em síntese, aqui a aplicação do direito é mediata: surge um procedimento de decisão a ser realizado por um terceiro (que, portanto, não é mais parte). Essa configuração exige como plano de fundo uma sociedade hierarquicamente dividida e pressupõe uma espécie de dominação política concentrada. A partir disso, as expectativas começam a se diferenciar – pois o resultado da contenda é sempre incerto -, mas ao mesmo tempo ainda são vistas como necessárias, verdadeiras, uma vez que ainda permanecem fortes resquícios de ritualismo e misticismo nos procedimentos jurídicos.
            O surgimento da escrita faz disparar a capacidade de inovação, pois torna capaz uma maior possibilidade de interpretações divergentes. A variação aqui é alta, bem maior do que no direito arcaico, graças à escrita.
            Contudo, o mecanismo problemático desta espécie de direito é o da seleção: ainda existem problemas de acolhimento das novas comunicações. O jusnaturalismo é uma concepção que surge para ao mesmo tempo estagnar a capacidade de inovação das comunicações – pois o direito existente está sempre subordinado a um direito superior e imutável -, mas a distinção entre direito mutável e imutável serve como ponto de partida para o funcionamento da próxima etapa da evolução do direito: o direito positivo.
            As características deste direito são, portanto: a aplicação mediata do direito por um terceiro, juiz; variação ou inovação muito maior do que a do direito arcaico; baixa seleção, tendo em vista a limitação na capacidade de incorporação de expectativas que desapontam o sistema.

sábado, 1 de outubro de 2011

Morrinha e uma visão sobre a amazônia

Ao amigo Paulo Klautau Filho, a quem chamou atenção o tema, destaco parte do texto revisto sobre o curso "Hermenêutica do vazio- estudos a partir do romance "SAFRA", de Abguar Bastos", que estou preparando para publicação.
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Outros elementos vão se adicionando a esses relatos de viagens: são elementos interessantes que aparecem também em outra figura, anterior um pouco ao Alexandre Ferreira, e que viveu durante bastante tempo aqui na região: esta figura foi o Padre Antônio Vieira. Nos relatos – ainda não de viagem, mas nos sermões – de Vieira, um elemento que é absolutamente reincidente e recorrente quando se fala da região amazônica é também o elemento do vazio, é o elemento da submissão ao clima e à natureza.
Só que aí, com outro foco, com outro aspecto. O problema todo é o desafio civilizatório diante de uma natureza tão poderosa e tão titânica, que força os habitantes a irem para uma outra direção, completamente diferentes desta suposta direção civilizatória. Estou querendo dizer o seguinte (esse é o elemento recuperado tempos depois na literatura naturalista aqui na região, com Inglês de Souza, por exemplo): o clima quente, as enormes distâncias e a sensação de abandono e de impotência diante dessas forças mitológicas da natureza fazem com que nós tenhamos mais suscetibilidade a elementos instintivos. Nós acabamos nos dominando pelos instintos – instintos estes da natureza, que acaba soterrando todo mundo pela região amazônica. Então, os instintos procriativos, os instintos sexuais, a lassidão – no sentido empregado nos sermões do Vieira; Abguar Bastos utiliza, aqui no “Safra”, outro termo, mais regional: a morrinha.
O que é a morrinha?  “Morrinha é aquela vontade de espreguiçar-se, de bocejar, de olhar as paisagens sem o castigo dos detalhes. Não andar, ou andar mansamente. Descer, em vez de subir. Não chegar ao fim de coisa alguma. Não trabalhar. Não se aborrecer. Não ligar as circunstâncias, nem os mínimos incidentes”[1]. Quem está com morrinha, aqui, é o Valentim, que está preso. Agora, se nós destacarmos só esta descrição do que é a morrinha (a vontade de não trabalhar...), veremos que é a ausência de qualquer interesse artístico (vejam como essa é uma expressão artística): “(...) olhar as paisagens [esse é o olhar do homem da região; não dos estrangeiros sobre a região] sem o castigo dos detalhes”[2].
Um pesquisador que venha construir um relato sobre viagens não pode olhar a paisagem assim; ele tem que olhar as paisagens e se castigar com os detalhes. Ele tem que procurar registrar tudo o que há, nos seus detalhes, nas suas minudências. Aqui, a morrinha é uma outra coisa. É um vazio estético também. Mas se nós destacarmos isso simplesmente, pode somente ratificar alguma impressão sobre a hiléia amazônica, sobre aquilo que lá os relatos dos sermões dos jesuitas chamavam de alterius (aquele mundo outro que é a Amazônia) – alterius não é só a imagem sobre o Brasil, é a imagem sobre a Amazônia: o mundo-outro. O alterius poderia até caber na descrição da morrinha: “o índio não quer trabalhar, ele não tem nenhuma perspectiva de cultura. O clima não convida a isso”. Mas em um dado ponto do texto, Abguar Bastos dá um outro tom para a morrinha:

“Hora de morrinha. Valentim queria saber se ela estava ali, no meio do povo cristão, a fim de que, de noite, soltos dela, todos tivessem impressão de ter quebrado um encanto milenar para o reencontro com a vida. Estava cheio de calma, apenas desejava que aquela morrinha não acabasse mais, nunca mais. As mãos caiam das grades grossas, e Valentim dormiu, quieto, como um homem morto”.

A morrinha, para ele, aqui, era a forma, também, de ele sobreviver nessa prisão. E o único sonho a que ele se permitia era a ideia de que, acabada a morrinha, a noite, talvez ele – assim como o povo cristão, como ele se refere à população do seu local – pudesse acreditar estar livre de alguma coisa, estar livre de um encanto milenar, um encanto que se abate sobre todos eles naquele local a uma determinada hora. Um encanto, um enfeitiçamento, o elemento místico que acaba se misturando com uma força da natureza. A natureza sendo descrita com algo de místico, com elementos de misticismos, e que se abatem sobre o desejo das pessoas, sobre a compreensão delas, que turva o pensamento, mas que, no entanto, consegue também dar algum tipo de refrigério, dar algum tipo de consolo: Valentim consegue dormir numa cadeia podre, por causa da morrinha. Ele dorme de tarde, e não de noite. A noite é o horário dos morcegos e das lacraias. Portanto, ele dorme não de noite, mas na morrinha. Todos dormem na morrinha.
O desenho que há no final deste capítulo é um jacaré dormindo, confundido aí com um tronco: esse é um elemento que é transformado esteticamente pelo Abguar Bastos, mas não é uma ideia original dele. A mistura do elemento natural que transcende para algum significado místico está aqui, na descrição da morrinha. A ideia de que essa presença imperiosa do clima determina os nossos horários e determina também os nossos sonhos, as nossas expectativas e os nosso desejos está presente na descrição da morrinha.




sexta-feira, 30 de setembro de 2011

O Constitucionalismo na Bolívia

Artigo que merece reflexão sobre tema ainda pouco discutido pelo nosso constitucionalismo. As idas e vindas do modelo diferenciado tentado pela Constituição boliviana.

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SALVADOR SCHAVELZON
O conflito em curso na Bolívia em razão da resistência à construção da
rodovia que cortaria o Tipnis (Território Indígena Parque Nacional Isiboro
Sécure) é um confronto entre duas forças que, até recentemente, conviviam
como parte do projeto político que elegeu Evo Morales e resultou na
proposta constitucional de 2009.
De um lado a proposta indígena do "Viver Bem" e da construção de um Estado
plurinacional comunitário, com base no direito à diferença e
reconhecimento de autonomia e território dos indígenas.
De outro, a busca de integração nacional, a luta contra a pobreza pelo
desenvolvimento capitalista, a industrialização e o discurso estatal
nacionalista, que prioriza o que seria o interesse das maiorias, apesar de
custos ambientais e da violação de direitos. A tensão na Bolívia expõe a
possibilidade de que a solução não seja a habitual, do etnocídio, tendo em
conta a capacidade de mobilização tantas vezes demonstrada.
A recente operação policial para dispersar a marcha de protesto deve ser
compreendida como sinal de um novo cenário, no qual o governo se afasta de
seus velhos aliados.
As duas tendências agora antagônicas resultam na separação entre os povos
indígenas da selva -e seus aliados nas cidades e nas comunidades andinas
que buscam a reconstituição de seus territórios ancestrais- e o governo e
suas bases camponesas e cocaleiras, que vêm ocupando o território e
aprovam a construção da estrada.
É por isso que se escuta hoje que "Evo Morales nunca foi indígena" e
antigos adversários se unem em defesa dos povos das terras baixas.
Com o desenlace desse conflito, poderemos determinar se surgirá um novo
quadro político, com novos agentes que arrebatem ao governo as bandeiras
da descolonização, da Pachamama e do território; ou se o governo Morales
reagirá e recuperará sua capacidade de avançar costurando projetos
diferentes das maiorias e também das minorias indígenas, que pela primeira
vez detêm poder, para levar adiante a construção de um Estado
plurinacional na Bolívia.

SALVADOR SCHAVELZON é antropólogo e professor da PUC-Campinas, com
doutorado sobre o processo constituinte boliviano (Museu Nacional da
Universidade Federal do Rio de Janeiro)

sábado, 17 de setembro de 2011

APOLOGIA DA HISTÓRIA- MARC BLOCH

Agradeço ao Monitor Diego S. R.Vale pelo competente resumo do cap. I e II do livro de Bloch, que publico aqui após a reunião de estudo conduzida por ele no dia 14.09.2011 no CESUPA.
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A escolha do historiador

Este texto é o primeiro capítulo do livro “Apologia da História”, escrito por Marc Bloch. Seu objetivo é delimitar e traçar as linhas do ofício do historiador. Trata-se, portanto, de um estudo de terreno, cuja finalidade é responder às perguntas “o que é história?” e “o que faz um historiador?”, ou seja, identificar quais são as características que fazem parte dum estudo propriamente histórico e que o diferencia do ofício do biólogo e do físico, por exemplo.
Dito de outra maneira, é uma busca epistemológica sobre as condições de conhecimento e de verdade do historiador. Dentro da pluralidade de significados que o termo história evoca, está-se falando aqui da história como teoria (Historik).

A história e os homens

O texto começa por oferecer resistência à idéia de que a história é uma ciência do passado, pois mesmo que tal abordagem tivesse sido adotada pelos historiadores originários, parece-lhe absurda a formação de uma ciência sobre fatos que apenas tenham em comum a característica de terem acontecido em épocas contemporâneas.
Utilizando um exemplo, o autor explica quais seriam os atributos de um objeto da ciência da história. Narra a história da cidade de Bruges, cujo crescimento às proximidades do golfo Zwin acabou por causar o assoreamento deste último. A interação humana com a natureza, isto é, o contato da população da cidade de Bruges com o solo e as águas do Zwin, que acabou por ocasionar a sua tomada pelas areias, é apontada como um fato eminentemente histórico.
Desse modo, com o surgimento do fator humano na equação que tentava explicar a razão do assoreamento, uma ciência pede o auxílio da história para a resolução do problema. “O objeto da história é, por natureza, o homem. (...) Já o bom historiador se parece com o ogro da lenda. Onde fareja carne humana, sabe que ali está a sua caça”. O homem é o primeiro elemento do objeto da História.
Quanto à expressão “ciência da história”, o autor evoca a discussão sobre a classificação da história como ciência ou arte. Atentando para a diferença entre o humano e o estritamente natural, conclui por entender diferentes os métodos da matemática, física etc. e da história. “Os fatos humanos são, por essência, fenômenos muito delicados, entre os quais muitos escapam à medida matemática”. Ainda sobre esse aspecto, termina por comparar as diferenças entre os estudos do mundo físico e do espírito humano com, respectivamente, as tarefas do fresador e do luthier – o primeiro trabalha com precisão numérica; o segundo, pela sensibilidade, pelo empirismo. É requisito ao trabalho do historiador o “tato das palavras”.

O tempo histórico

Em seguida, o texto prossegue a examinar o segundo elemento do objeto da história: o tempo. No entanto, o tempo da História não representa apenas uma medida – é uma realidade viva e concreta, fundamental para a compreensão dos fatos históricos. O tempo é, também, como realidade pulsante, o maior problema da pesquisa histórica. Pois ele é ao mesmo tempo contínuo, ou seja, incessante e perpétua mudança – e essa é a origem da dificuldade que o historiador tem em considerar o nível de influência de um fato histórico anterior em relação a seus subseqüentes.

O ídolo das origens

Ao tratar do “ídolo das origens”, o autor critica uma forma de visão sobre a história. Explica que sempre foi bastante comum alguns historiadores seguirem a orientação dos estudos do mais próximo pelo mais distante. A busca das origens é, desse modo, perigosa, pois procura não apenas um começo. Nesta condição, o passado daria completo sentido ao mais recente. Este é um erro do qual, afirma o autor, as ciências naturais se encontram livres. O atraso dessa filosofia ainda repercutiu na área das ciências humanas.
O evolucionismo biológico foi a salvação das ciências da natureza, pois tal concepção afastava progressivamente as explicações das formas primitivas, atentando mais para a influência das condições do momento mais recente. No entanto, a história permaneceu impregnada pela glorificação das origens, tanto na França quanto na Alemanha.
Ainda, outro elemento tomou parte simultaneamente na vinculação da história ao passado. Na história das religiões, a explicação pelas origens parecia fornecer um critério para o próprio valor destas. De alguma maneira, tal preocupação acabou por contagiar outros campos de estudo.
Entretanto, saber que Jesus Cristo fora crucificado e em seguida ressuscitado não é suficiente para compreender como é possível que o cristianismo tenha se mantido mais ou menos homogêneo com o passar do tempo e durante todo o desenvolvimento da civilização. Neste ponto, a discussão toma as colorações do evolucionismo, com o exemplo do carvalho e da glande. O cristianismo se manteve por razões humanas, que se encontram no meio social (“clima humano”).
A mesma insuficiência pode ser sentida no reino das palavras. Termos cuja etimologia por si só não explica os significados do atual uso da linguagem são o exemplo. Palavras como bureau e timbre tiveram originalmente um sentido, que é bastante distinto do seu significado atual, pois o meio social contemporâneo (de outro modo, o uso das palavras na linguagem corrente) exerce um impacto crucial na vida daquelas.
De outro modo, a investigação das origens acabou por se revelar o disfarce da “mania do julgamento” – cumpriam apenas a finalidade de justificar a condenação de alguma prática política ou moral.
Esta é mais ou menos a visão do historiador que se quer passar com as imagens impressas nas capas e páginas dos livros de história – pelo menos os traduzidos e impressos no Brasil.
Bloch repudia completamente a filosofia do estudo exclusivo do passado e afirma que só é possível explicar um fenômeno histórico de acordo com seu momento. “Os homens se parecem mais com sua época do que com seus pais”.

Passado e presente

Por outro lado, existem, no canto oposto dos extremos, os devotos do presente imediato. Contudo, a noção da história como ciência do presente é no mínimo tão problemática quanto a de ciência do passado. O presente é um momento singelo e quase imperceptível na eterna evanescência do tempo. Goethe diz que não há presente, mas apenas um devir. Não resiste também a concepção da história como ciência do passado recente, pois a crítica sobre o traçado das linhas do tempo (o quão recente tem de ser um fato histórico?) lhe derruba facilmente.
Ressalva-se, em seguida, que a tendência a se aproximar de um dos dois extremos expostos é bem recente. Os mestres antigos e modernos nunca ignoraram que a compreensão do passado era fundamental para a elucidação do presente. Atribui a causa desse efeito, talvez, às inovações tecnológicas, que abrem um abismo psicológico das gerações atuais em relação às anteriores e seus antecedentes mais longínquos.
Afirmava-se que a engenharia contemporânea, por exemplo, mas não apenas esta ciência, não teria nada de útil a aprender com os trabalhos científicos de seu passado. A revolução drástica e repentina da técnica teria tragado todas as instituições anteriores e lhes atirado no vazio.
Porém, Bloch resiste a tais assertivas, pois a ignorância do passado não apenas prejudica a compreensão do presente, como também atrapalha a busca pelo remédio de determinado problema em questão. É absurdo limitar a causa da configuração atual de determinada sociedade estritamente ao seu momento imediatamente anterior. Parece muito claro que fatores ainda mais antigos continuam a exercer pressão sobre as estruturas sociais, inevitavelmente. A compreensão do atual é, por muitas vezes, impossível sem o apelo a eventos históricos um tanto mais distantes.
“A incompreensão do presente nasce fatalmente da ignorância do passado. Mas talvez não seja menos vão esgotar-se em compreender o passado se nada se sabe do presente”.
Por fim, a história, a ciência que incessantemente unifica o estudo dos mortos ao dos vivos, parte sempre do mesmo pressuposto. O historiador começa do presente - seu ponto de partida é o seu tempo. “(...) no filme por ele considerado, apenas a última película está intacta. Para reconstituir os vestígios quebrados das outras, tem obrigação de, antes, desenrolar a bobina no sentido inverso das seqüencias”. Está é a condição primária do exercício do historiador.

Capítulo II: A observação histórica

As considerações sobre o método de uma ciência são, no mínimo, tão importantes quanto as sobre seu objeto. O objetivo deste capítulo é investigar as considerações sobre os métodos da história no decorrer do tempo.

Características gerais da observação histórica

Em se tratando de fatos situados no passado, diz-se que o historiador assume posição semelhante à do investigador na reconstituição de um crime – colhe, de maneira mediata, informações por meio de testemunhas. Ele não possui acesso direto aos fatos do passado. Este tipo de problema, contudo, não se restringe apenas ao estudo do passado.
No presente também, o horizonte do historiador encontra-se limitado por questões de perspectiva. Pois a percepção do indivíduo encontra-se estreitamente limitada a suas faculdades sensíveis e sua capacidade de atenção. Enfim, o estudo do presente não é, neste sentido, privilegiado em relação ao estudo do passado, uma vez que todo o conhecimento da humanidade é, em substância, construído pelos testemunhos dos outros. Nós temos acesso imediato aos nossos próprios estados de consciência e nada mais.
Todavia, Bloch põe em questão o dogma da intermediação imprescindível dos conhecimentos do historiador. Esta teoria, elaborada por historiadores mais antigos, levava como pressuposto a concepção da história como tragédia grega. Os fatos históricos deveriam ser recontados como episódios precisamente narrados. Com relação a alguns fatos, é verdade que a situação da investigação do historiador se assemelha à da brincadeira do telefone sem fio, dentro da qual ele se localiza na última posição...
Dessa maneira, a nova proposta de história de Bloch busca um afastamento da narração dos grandes acontecimentos históricos e utiliza como principais fontes os eventos do homem comum – as histórias da vida privada, por exemplo. A construção das “micro histórias” é o principal objetivo da escola histórica dos Annales.
Existem fatos históricos (como exemplo, os fósseis de esqueletos encontrados nas muralhas de algumas cidadelas sírias) e cujo acesso se dá sem a necessidade da intermediação de um ser humano. Desse modo, a situação do historiador supera a definição rigorosa do método. Note-se que se considerava conhecimento indireto como aquele cuja intermediação necessária deveria ser estritamente humana.
São citados, a seguir, muitos outros objetos históricos cujo acesso se dá em primeira mão. Retomando uma comparação feita anteriormente, do ofício do historiador como reduzido a conhecer somente aquilo que lhe é trazido por relatos de um estranho, Bloch acentua que nem sempre a investigação se dá desta maneira. Por diversas vezes, é possível ao historiador vislumbrar seu objeto com seus próprios olhos.
A diferença entre a investigação do passado remoto e a do passado recente é apenas de grau. O fundo do método continua o mesmo. O historiador tem contato e percepção direta dos restos da muralha em que foram encontrados ossos de crianças (exemplo dado no texto). É por uma operação puramente indutiva (e criação individual, portanto) que ele atribui, a partir dos restos deste objeto encontrado, a prática de sacrifícios pelos povos que ali viviam.
Tomadas estas devidas considerações, Bloch descreve a primeira característica da observação histórica: trata-se de um conhecimento através de vestígios. Ou seja, o historiador pesquisa aquilo que nos resta de um fenômeno, que a nós é possível captar através dos sentidos de algo que pertence a um passado remoto ou mais recente.
Mas o conhecimento do passado está sempre em progresso. O Oriente se abriu recentemente para ter seus fenômenos históricos desvendados. Novas tecnologias e novas formas de investigação surgem, proporcionando acesso a dados antes inatingíveis. O campo do conhecimento humano reservado à História está sempre em evolução, mesmo que a progressão tenha seus limites. A capacidade que ciências como a química têm de criar seu próprio objeto ainda permanece, aos historiadores, como um sonho longínquo. A história nunca está presa ao passado e, pelo contrário, deve muitas de suas conquistas ao fato de seu início sempre se dar no presente.
E assim, uma grande parte da história da humanidade permanece inacessível devido às limitações da própria condição da disciplina, que lida com fenômenos já consumados. As ciências do homem não estão, contudo, em situação mais prejudicada do que a de outros ramos do conhecimento humano, como a paleontologia. Do mesmo jeito que o historiador não tem acessos a certos documentos que lhe dariam acesso a informações relevantes sobre a mentalidade de uma civilização, ao paleontólogo é impossível encontrar qualquer vestígio sobre as glândulas de um dinossauro, por exemplo, pois destes só lhe sobram os esqueletos.

Os testemunhos

Os testemunhos encontrados pelo historiador são divididos tradicionalmente em duas categorias: os voluntários e os involuntários. Os voluntários são os documentos ou depoimentos deixados propositadamente para a posteridade. Os segundos, por sua vez, tinham como destinatário não o historiador, o pesquisador à procura do vislumbre de uma civilização antiga, mas eram entregues aos homens da própria época.
Uma preciosa contribuição é, sem dúvida, prestada pelos testemunhos da primeira categoria. Contudo, é nos testemunhos da segunda categoria que o historiador depositará sua mais profunda confiança. Isto porque os documentos voluntários, em certa medida, são, como os testemunhos de alguns romanos (citados como exemplo), incoerentes com outras fontes de informação que são encontradas sobre a civilização romana.
Além disso, alguns pedaços da história da humanidade, como a pré-história e a história econômica, só puderam ser reconstruídos tendo como fonte os testemunhos da segunda classe. Estes, no entanto, não estão imunes à perversidade, mas os indícios deixados pelas civilização de maneira não pré-meditada fornecem ao historiador material suplementar de extrema relevância para o preenchimento de lacunas deixadas pelos testemunhos do primeiro tipo, bem como para a resolução de contradições presentes nestes.
Os testemunhos involuntários são capazes de livrar o historiador das amarras do preconceito e da “miopia” presente na visão de mundo daqueles homens mesmos, que deixaram descrições sobre a vida na sociedade com o propósito de serem futuramente descobertos.
Ainda, os testemunhos voluntários são, por muitas vezes, mais interessantes ao pesquisador não pelo que tentaram propositadamente dizer, mas pelo que dizem sem ter o esforço consciente de fazê-lo. Desta maneira, mesmo que o conhecimento do passado se dê sempre por meio de vestígios, é possível conhecer sobre ele muito mais do que os seus escritores julgaram nos dar a conhecer. É uma grande revanche da inteligência sobre o dado – sujeito cognoscente sobre o objeto cognoscível.
Configura-se, a partir dessa visão, a atividade criativa do historiador no seu trabalho de pesquisa. Pois os documentos não falam senão quando são interrogados. Mesmo que alguns historiadores acreditem que o seu trabalho se limite a verificar e apreender as informações contidas em um documento (“no começo era o documento”), definitivamente não é assim que procedem durante sua pesquisa, estando eles conscientes disso ou não.
Esta concepção não se circunscreve apenas ao âmbito histórico. “No princípio, é o espírito”. Toda investigação histórica pressupõe que a busca aponte em alguma direção e nunca, em nenhuma ciência, a observação passiva gerou frutos.
O interrogatório surge como uma necessidade preliminar do trabalho do historiador – uma condição de possibilidade do conhecimento histórico. Por isso, pouco importa se o pesquisador esteja consciente ou não desta etapa de seu trabalho. “Nunca se é tão receptivo quanto se acredita”. A atividade de pesquisa histórica contém sempre em si um germe criativo do próprio sujeito.
Dada a quase infinita diversidade de documentos e testemunhos históricos que podem ser encontrados – além do natural descontentamento do historiador em se limitar ao estudo de apenas alguns deles -, o historiador deve saber as técnicas de manuseio e interpretação dos objetos de qualquer natureza. Os fatos humanos são os mais complexos de todos. Bloch preocupa-se com o ensino das mais variadas técnicas e seu emprego para a melhor e mais completa compreensão dos fenômenos históricos.

A transmissão dos testemunhos

O ofício do historiador também está sujeito às imposições do destino. Alguns dados de civilizações antigas permanecerão talvez eternamente obscuros pelo fato de terem sido destruídos, seja pela vontade dos homens ou por uma catástrofe da natureza. A pesquisa histórica tem sempre como fator de risco essas considerações de caráter irracional – não podem ser previamente conhecidas de modo a serem evitadas, portanto.
Se por um lado estes fatores irracionais por vezes atrapalham a pesquisa histórica, por outro o conhecimento de alguns objetos históricos só se deve à contribuição do inesperado. Se não fosse a erupção do Vesúvio não teríamos o conhecimento de Pompéia. Da mesma maneira, as revoluções e guerras – cujas causas são evidentemente humanas – podem tanto jogar ao esquecimento bibliotecas inteiras quanto serem as exclusivas responsáveis pela sua preservação.
É ilustrado neste capítulo o problema das fontes da história, pois todo historiador, ao desenvolver sua pesquisa, lança mão dos mais variados tipos de arquivos e documentos. Bloch recomenda aos escritores da história que se dediquem à criação de pelo menos alguns parágrafos explicando como ele chegou a seu resultado – quais livros, arquivos e documentos teve de pesquisar e sob quais condições os encontrou.
Pois muito embora parte das explicações do desaparecimento de algumas fontes históricas sejam simplesmente trágicas, algumas causas são humanas e não escapam à análise. Bloch se preocupa com um modelo de sociedade que negligencia os caminhos do historiador – concebe uma idéia de comunidade que atenta para o conhecimento de si mesma e o organiza racionalmente. Este esforço de eliminar a dissimulação (isto é, a negligência e o sigilo perverso) pelo qual é possível preservar aquilo que não é inevitavelmente destruído pela natureza é desejável (e até mesmo exigível) na medida em que evita a perda de ferramentas importantes para a compreensão das sociedades.